A Mosca
(Quadro "Desculpa?" de Diego Trapa - Tinta acrílica em tela de 40 cm X 50 cm)
Se aspiras saber, digo que tudo começou e terminou à mesa do café da manhã. E lá estava eu, por óbvio. Não sei se embebido em minha serenidade matinal ou ainda bêbado como um pescador de vestígios fabulosos. Talvez eu não fosse mais tão belo como ontem. Talvez a carroça tenha virado e trazido à tona minha realidade de estivador de remelas. Talvez eu tenha retornado, talvez um mero sonolento solitário.
Naquela manhã de fraca poesia, próximo a um cataclisma onírico, reparei como o som da fritura na panela se assemelha ao caminhar de um Raskolnikov sobre a neve. Mesmo sem nunca ter sentido o gosto da neve, eu sabia que era assim. E se não fosse, qual haveria de ser o problema? Por acaso alguém sabe qual som brota das tempestades solares?
Ah, como meu sangue está pesado... Como estão leves os meus ossos... Preciso de um novo coração! Mas, por favor, não conte isso a ninguém. Conto-lhe apenas para mim.
Ela que perde em habilidade para uma lontra, minha delicada empregada de duzentos quilos, arremessou ao ar um prato com dois ovos fritos e mal passados que, literalmente, ao choque contra a mesa, decolaram numa linha vertical e, em câmera lenta, aterrissaram intactos sobre o mesmo prato.
Nem o acasalamento de duas centopéias seria mais incrível!
Sei que meu estado de espírito àquela hora não comportava qualquer reflexo, e por esse motivo, talvez, lhe afirmo que jamais esquecerei o que vi.
Duas bolas de fogo alçando vôo perante meus olhos, dois cometas desgovernados que subiam alegres, flutuando envoltos por uma camada plasmática de doçura e encanto. E no ápice de sua luta gravitacional permitiram-se deformar, conjugar novos corpos, engolir moscas como uma planta carnívora, unir-se e separar-se como inéditos projetos físicos sob a pena de Deus. Somente depois, em meio à abstração de seus desejos antes contidos, deixaram-se cair. Cair a queda dos vitoriosos. A queda daqueles que triunfam enquanto o fogo queima em suas entranhas. Sem mais, pousaram certos da vitória.
Apenas dois ovos. Dois ovos fritos cientes da verdade do universo. “O mundo é o que eu quero, ou o que sou capaz de querer”, eles diziam. “Não tenha medo das telas em branco... Saiba que elas aceitam tudo”.
Não é preciso lhe dizer que diante daquele par de gemas voadoras não pude esboçar qualquer reação, senão a de voltar a respirar. A da minha empregada, invejo, foi de uma sensibilidade ímpar: a entrega de um gordo sorriso e uma reboladinha escrota ao som de Lemon Tree, que tocava no radinho de pilha mal sintonizado.
Naquela manhã de fraca poesia, próximo a um cataclisma onírico, reparei como o som da fritura na panela se assemelha ao caminhar de um Raskolnikov sobre a neve. Mesmo sem nunca ter sentido o gosto da neve, eu sabia que era assim. E se não fosse, qual haveria de ser o problema? Por acaso alguém sabe qual som brota das tempestades solares?
Ah, como meu sangue está pesado... Como estão leves os meus ossos... Preciso de um novo coração! Mas, por favor, não conte isso a ninguém. Conto-lhe apenas para mim.
Ela que perde em habilidade para uma lontra, minha delicada empregada de duzentos quilos, arremessou ao ar um prato com dois ovos fritos e mal passados que, literalmente, ao choque contra a mesa, decolaram numa linha vertical e, em câmera lenta, aterrissaram intactos sobre o mesmo prato.
Nem o acasalamento de duas centopéias seria mais incrível!
Sei que meu estado de espírito àquela hora não comportava qualquer reflexo, e por esse motivo, talvez, lhe afirmo que jamais esquecerei o que vi.
Duas bolas de fogo alçando vôo perante meus olhos, dois cometas desgovernados que subiam alegres, flutuando envoltos por uma camada plasmática de doçura e encanto. E no ápice de sua luta gravitacional permitiram-se deformar, conjugar novos corpos, engolir moscas como uma planta carnívora, unir-se e separar-se como inéditos projetos físicos sob a pena de Deus. Somente depois, em meio à abstração de seus desejos antes contidos, deixaram-se cair. Cair a queda dos vitoriosos. A queda daqueles que triunfam enquanto o fogo queima em suas entranhas. Sem mais, pousaram certos da vitória.
Apenas dois ovos. Dois ovos fritos cientes da verdade do universo. “O mundo é o que eu quero, ou o que sou capaz de querer”, eles diziam. “Não tenha medo das telas em branco... Saiba que elas aceitam tudo”.
Não é preciso lhe dizer que diante daquele par de gemas voadoras não pude esboçar qualquer reação, senão a de voltar a respirar. A da minha empregada, invejo, foi de uma sensibilidade ímpar: a entrega de um gordo sorriso e uma reboladinha escrota ao som de Lemon Tree, que tocava no radinho de pilha mal sintonizado.
quarta-feira, fevereiro 28, 2007
Vermelho Mundo
(Quadro Naïf-Surrealista de Diego Trapa - Tinta acrílica em tela de 50 cm X 40 cm)
Meus músculos se contraem suspensos pela dor que pende firme sobre o charco. Amarrado no galho de uma árvore, meu corpo luta em vão contra a corda que limpa a carne da pele suja. Estou de ponta-cabeça, e os nós, vértebras que afogam rins, ordenham à água meu doce sangue. Meu corpo dói. As feridas ardem ao vento. Sinto minhas próprias unhas e minha língua está mais grossa do que de costume. Creio que me resta o fim. O fim desse vermelho mundo.
Todas as noites, o som da floresta vibra no espaço entre meu peito e as costas, exatamente onde flutua meu coração. As veias do meu pescoço permanecem cheias e tamborilam pulsantes, quentes, fazendo com que minha respiração líquida e sufocante exija de mim força para superar sua amargura.
Não sei por que, mas na escuridão da noite sinto ainda mais as formigas que caminham sobre minhas pernas. Minhas orelhas, minhas orelhas! Minha cruel certeza é o pingar torturante do tempo. Temo que ele me sangre até secar. Que sejam as lágrimas as primeiras.
Durante as manhãs, procuro me distrair com o ruído provocado pela tensão das cordas. A cada movimento de meus ombros elas se contraem e uma nota musical é lançada ao ar. Com destreza, e um pouco de delírio, consigo me comunicar com as cigarras. Omoplatas atrás para o dó, o grilo diz si, enquanto o vento gira, gira e gira. Meu corpo em espiral rodopia fundindo as árvores, transformando-as numa enorme mancha esverdeada, enquanto o ar serve de palco para a melodia sublime evocada por um pássaro iluminado. Esta música celestial faz brotar em mim uma gargalhada ensangüentada de alegria que transforma em mangue esse lodo onde padeço solitário. Parando de girar, solto um grito de prazer até ser sufocado novamente por lágrimas copiosas.
Os dias passam e eu sigo pendurado nesta árvore sobre o pântano do esquecimento. Não lembro como cheguei até aqui, e nem para onde foi a terra onde meus pés desenhavam o futuro. Acho que não sinto mais meu corpo. Deve ser normal quando se está assim permanentemente de cabeça para baixo. É estranho saber que meu coração não tem mais forças para alimentar minhas pernas. Sem elas é impossível caminhar. Mas pensando bem, do avesso, as sementes da imaginação são irrigadas, o que me permite enxergar um vasto céu sob meus pés.
sexta-feira, janeiro 12, 2007
A Noiva e o Palhaço
(Quadro Sem Nome de Diego Trapa - Tinta acrílica em tela de 50 cm X 30 cm)
Era tarde da noite e, de tão deserta, eu ouvia o ecoar dos meus passos no fim da rua. No chão, ainda molhado pela chuva, o brilho da luz fosca ressaltava a contradição que em mim surgia: mãos esperançosas a remexer o nada no bolso de meu paletó, os tostões deixados alhures como migalhas dadas aos pombos. Nada me restava a não ser um cigarro. Apenas um cigarro para acompanhar o retumbar de pensamentos sórdidos em minha mente. Reis que correm nus por um campo feito de ouro onde espadas brotam das copas... Eu estava perdido e, em vão, caminhei assim, sonoramente pensativo, por um longo tempo.
Larguei-me então sobre o meio-fio da calçada para esquecer. Do outro lado da rua, vi que uma mulher vestida de noiva, sentada à espera, chorava compulsivamente.
Se naquela noite eu não tivesse perdido tudo tendo em mãos uma seqüência com rei de ouros como carta alta, talvez eu visse naquela triste noiva uma foliã retornando bêbada de um baile de carnaval. Quem sabe? Mesmo não sendo época de carnaval, se eu estivesse feliz ela estaria sim vindo de um baile. Ou talvez eu a quisesse como noiva de festa junina, não importa. O fato é que, quando estou bem, suponho a felicidade dos outros. Essa é a minha forma de egoísmo. E não precisa me dizer, caro leitor, eu sei, não há crueldade maior do que a daqueles que curam a dor dos outros fechando os próprios olhos.
Mas eu estava triste. E toda aquela tristeza me permitia afirmar, com a irretocável segurança que costumo dispor, que as lágrimas daquela noiva eram de dor. Quem haveria de negar? Quaisquer olhos enxergariam uma dor atraente, uma dor genuína, sincera, bonita. Acrescente a isso o som de seu choro que reverberava de maneira a ser possível ouvi-la atrás de mim, sussurrando auguras torturantes, desmanchando a menina que até então dormia abraçada ao seu gato de estimação.
Levantei-me em sua direção movido pelo sentimento de solidariedade que floresce justamente naqueles que nada têm a oferecer. Quase despercebido, sentei-me ao seu lado e ali permaneci sem dizer uma palavra sequer. Ficamos assim parados, lado a lado, dominados pelo silêncio que gela os pés da alma e inevitavelmente espera, espera, espera...
Espera algo que sugere a esperança na suave brisa que, entre os galhos das árvores, revela dois grandes olhos de coruja. Ou quem sabe apenas aguarde o vento que sopra, disseca e seca as lágrimas dos que se calam. Suposições, para não dizer que o silêncio espera o tufão que nasce do encontro de olhares descuidados.
Rompendo a silente espera, um jornal velho, solto pelo chão, passou carregado pelo vento. Ao mesmo tempo a luz do poste falhou, piscou por alguns instantes e deu início às primeiras gotas de chuva. Foi quando me levantei, olhei para os lados e retornei para o outro lado da rua.
À beira da calçada, através da chuva, a noiva mantinha-se imersa em sua atmosfera nostálgica, enquanto eu, prestes a sucumbir em uma implosão existencial, fui desaparecendo aos poucos. Senti como se eu fosse uma personagem de um conto literário qualquer, fruto da imaginação de uma mente inconformada e subversiva, que no entanto começava a ter consciência de sua realidade. Não é fácil, nobre leitor, eu posso lhe afirmar. Antes é preferível ser um móvel velho esquecido no fundo de um calabouço, a ser um títere nas mãos de uma pessoa angustiada e egoísta.
Diante daquela revelação quase mística, me senti impelido a libertar a pobre noiva de seus sofrimentos. Ela precisava saber a verdade. Afinal, não seria ela uma personagem criada para suportar os sofrimentos de alguém que não sabe chorar por conta própria?
Pela terceira vez naquele capítulo de minha vida, levantei-me para atravessar a rua. Dessa vez vi que a noiva parara de chorar. Ela virou seu rosto em minha direção e, com a delicadeza de seu olhar borrado pela maquiagem, esperou por mim.
Naquele momento veio-me à cabeça o som das cinco cartas batendo na mesa, o cheiro dos charutos, o silencio inicial e, em seguida, os gritos de euforia. Quem suportaria tamanha sensibilidade num momento desses?
Olhei para meu punho e notei que agora eu usava luvas. Como se não bastasse, grandes sapatos vermelhos em meus pés dificultavam meu equilíbrio. Levei minhas mãos à cabeça e me deparei com um chapéu que não me lembrava ser meu. Saiba, estimado leitor, que para não lhe furtar a verdade, supero a vergonha daquele momento, quando lhe digo que em meu rosto teve vez um triste nariz de palhaço.
Respirei fundo ao confirmar minha natureza irreal, e caminhei em direção àquela pobre moça. No entanto, após dar meus primeiros passos, caí morto no chão.
Então, graças a mim, ou talvez àquele que fala através de mim, a noiva, dominada por uma alegria incontida, pôde enfim sorrir novamente.
Larguei-me então sobre o meio-fio da calçada para esquecer. Do outro lado da rua, vi que uma mulher vestida de noiva, sentada à espera, chorava compulsivamente.
Se naquela noite eu não tivesse perdido tudo tendo em mãos uma seqüência com rei de ouros como carta alta, talvez eu visse naquela triste noiva uma foliã retornando bêbada de um baile de carnaval. Quem sabe? Mesmo não sendo época de carnaval, se eu estivesse feliz ela estaria sim vindo de um baile. Ou talvez eu a quisesse como noiva de festa junina, não importa. O fato é que, quando estou bem, suponho a felicidade dos outros. Essa é a minha forma de egoísmo. E não precisa me dizer, caro leitor, eu sei, não há crueldade maior do que a daqueles que curam a dor dos outros fechando os próprios olhos.
Mas eu estava triste. E toda aquela tristeza me permitia afirmar, com a irretocável segurança que costumo dispor, que as lágrimas daquela noiva eram de dor. Quem haveria de negar? Quaisquer olhos enxergariam uma dor atraente, uma dor genuína, sincera, bonita. Acrescente a isso o som de seu choro que reverberava de maneira a ser possível ouvi-la atrás de mim, sussurrando auguras torturantes, desmanchando a menina que até então dormia abraçada ao seu gato de estimação.
Levantei-me em sua direção movido pelo sentimento de solidariedade que floresce justamente naqueles que nada têm a oferecer. Quase despercebido, sentei-me ao seu lado e ali permaneci sem dizer uma palavra sequer. Ficamos assim parados, lado a lado, dominados pelo silêncio que gela os pés da alma e inevitavelmente espera, espera, espera...
Espera algo que sugere a esperança na suave brisa que, entre os galhos das árvores, revela dois grandes olhos de coruja. Ou quem sabe apenas aguarde o vento que sopra, disseca e seca as lágrimas dos que se calam. Suposições, para não dizer que o silêncio espera o tufão que nasce do encontro de olhares descuidados.
Rompendo a silente espera, um jornal velho, solto pelo chão, passou carregado pelo vento. Ao mesmo tempo a luz do poste falhou, piscou por alguns instantes e deu início às primeiras gotas de chuva. Foi quando me levantei, olhei para os lados e retornei para o outro lado da rua.
À beira da calçada, através da chuva, a noiva mantinha-se imersa em sua atmosfera nostálgica, enquanto eu, prestes a sucumbir em uma implosão existencial, fui desaparecendo aos poucos. Senti como se eu fosse uma personagem de um conto literário qualquer, fruto da imaginação de uma mente inconformada e subversiva, que no entanto começava a ter consciência de sua realidade. Não é fácil, nobre leitor, eu posso lhe afirmar. Antes é preferível ser um móvel velho esquecido no fundo de um calabouço, a ser um títere nas mãos de uma pessoa angustiada e egoísta.
Diante daquela revelação quase mística, me senti impelido a libertar a pobre noiva de seus sofrimentos. Ela precisava saber a verdade. Afinal, não seria ela uma personagem criada para suportar os sofrimentos de alguém que não sabe chorar por conta própria?
Pela terceira vez naquele capítulo de minha vida, levantei-me para atravessar a rua. Dessa vez vi que a noiva parara de chorar. Ela virou seu rosto em minha direção e, com a delicadeza de seu olhar borrado pela maquiagem, esperou por mim.
Naquele momento veio-me à cabeça o som das cinco cartas batendo na mesa, o cheiro dos charutos, o silencio inicial e, em seguida, os gritos de euforia. Quem suportaria tamanha sensibilidade num momento desses?
Olhei para meu punho e notei que agora eu usava luvas. Como se não bastasse, grandes sapatos vermelhos em meus pés dificultavam meu equilíbrio. Levei minhas mãos à cabeça e me deparei com um chapéu que não me lembrava ser meu. Saiba, estimado leitor, que para não lhe furtar a verdade, supero a vergonha daquele momento, quando lhe digo que em meu rosto teve vez um triste nariz de palhaço.
Respirei fundo ao confirmar minha natureza irreal, e caminhei em direção àquela pobre moça. No entanto, após dar meus primeiros passos, caí morto no chão.
Então, graças a mim, ou talvez àquele que fala através de mim, a noiva, dominada por uma alegria incontida, pôde enfim sorrir novamente.
quarta-feira, dezembro 20, 2006
Devo dizer que vivo um momento de escuridão literária. Não encontro as palavras certas para me expressar e isso, definitivamente, me angustia. Sei que elas estão ali, ao meu alcance, mas por algum motivo não me permitem toca-las. É como se boiassem em um mar de dizeres constantemente influenciado pela lua nova, ou mesmo dormissem em um quarto escuro e silencioso.
Só não me digam covarde por recusar a luta para dizer, se covardia não há em preservar as palavras da dor de não se fazer compreender.
Por ora permito-me transcrever, ipsi literis, uma carta que há três dias recebi e muito me emocionou.
“Prezado Senhor D. Trapa,
Peço-lhe que não me julgues pela razão que me falta neste momento. O que lhe contarei em seguida é apenas fruto daquilo que trago comigo. Prometa-me que não irá rir ou mesmo chorar. Apenas leia atentamente o que tenho para lhe dizer. Depois rasgue esta carta. Não a queime, pois sei que, como o tempo, meu sentimento é indigno do fogo.
Hoje, por alguma razão que não sei dizer qual, acordei um tanto distraída. Meus olhos estavam displicentes e minhas mãos mais velhas do que de costume. As paredes ao meu redor estavam vibrantes, repletas de lucidez, enquanto os ponteiros do relógio insistiam em vacilar entre um segundo e outro.
Num átimo, meu espírito insensato fez com que tudo se tornasse óbvio. A respiração silenciosa do hospital, o cheiro de vela queimada, o som das rezas ao lado, o sol que arde no céu antes disso. Nada mais me era estranho, nada mais me seria incomum. Naquele instante, o mundo se revelou evidente em minha alma.
Foi quando escorreguei meus olhos sobre o retrato do passado e me deliciei com o tempo em que caminhava pelas calçadas de mãos dadas, aprumada, sorridente pelo eterno amanhã da juventude. Época em que meu rosto era moldado por traços finos e delicados, um tanto esnobes, assumo, mas de uma leveza singular...
E quando de volta ao encontro de minhas tranças brancas, permaneci descompassada pelo relógio que ia e vinha relutante.
Foi quando então, de súbito, minha atenção pousou sobre meu próprio braço. Pode parecer engraçado, mas achei curioso notar que seus pêlos estavam ligeiramente arrepiados. Não sei dizer por quê, mas estavam.
Fui tocada pelo sincero prazer de estar apenas comigo. Fiz de conta que meu braço era uma pequena plantação de trigo. Acariciei seus pêlos levemente, assim como o vento espalha as sementes sobre a terra. Uma terra fértil, um vasto campo, eu e todo o universo em um único corpo, um único tempo, retilíneo, estanque e azul.
Meu corpo se deliciava submerso no delírio que se apoderava de mim, quando o senti enrijecer. Era como se o ar a minha volta cristalizasse, me aprisionando dentro do mais belo diamante que jamais existiu. E não duvide, senhor, quando lhe digo que me pus especialmente alegre com aquilo.
Voltei a mim somente quando a enfermeira entrou em meu quarto trazendo o café da manhã. Sorri para ela e percebi que seus olhos brilhavam tomados de certa complacência. Por essa razão, bebi com gosto um grande copo de leite e comi todas as frutas sem desdizê-la. Ofereci-lhe novamente um sorriso, engoli os medicamentos que me trazia e, por fim, segurei sua mão em despedida.
Quando a enfermeira se foi, me levantei e caminhei até a janela. Antes de alcançá-la, percebi que em seu parapeito um pequeno caracol se arrastava. Me aproximei mais um pouco e dobrei meus joelhos para observá-lo melhor. Detidamente notei a beleza de seu vagar tranqüilo, de suas antenas, de suas cores. Quanta graça há no espanto que nasce da pequena natureza!
Coloquei meu dedo em seu caminho, mas o pequeno animal não hesitou em superá-lo. Subiu em minha unha e seguiu sua jornada. Em uma nova tentativa de pará-lo, atirei contra sua estrada minha plantação de trigo. Mas ele a devastou de forma irresistível, deixando para trás apenas a lembrança de um passado morto.
De repente, senti o vento lá de fora soprar contra meu rosto. Soltei minhas tranças e me fartei com o jorrar de meus cabelos brancos. Agarrei com cuidado o pequeno caracol e fechei meus olhos. Joguei minha cabeça para trás para senti-lo melhor e, naquele instante, parei o tempo em minhas mãos. Ele estava completamente dominado, assim como um rato cercado por piratas, inerte em um adeus incapaz de separar. Qual veneno, Meu Deus, destruiria a perfeição daquele momento?
Um ser tão singelo, gelado, doce e mole não era parte de mim. O meu universo não estava completo, faltava-me aquilo. O tempo. O tempo que não mais azul como antes, em minhas mãos era verde. Verde, singelo, gelado, doce e mole.
Cerrei meu punho com mais força até destroçar o pequeno casco do animal. Senti seu corpo gosmento escorrer macio por entre os dedos de minha velha mão. Mantive-me serena durante esse instante sagrado. Relaxei meus pés, em seguida minhas pernas, meu ventre, vértebras, peito e braços, até que minha mão se abriu. Então pude ver que o tempo não estava mais lá.
Ele nunca está.
Ah, meu caro, quero que saibas como rogo pelo dia em que permitas que seu coração desfrute de tamanha ventura. Mas enquanto esse dia não nasce, incipiente Escritor, leve dentro de ti algo deste pequeno relato. Ele traduz um agradecimento pelos contos que escrevestes, e um sutil apelo para que prossigas nessa dura jornada das letras. Por favor, não passe outros novembros em branco. Não nos prive deste mundo denso e cru onde sua alma habita.
Sempre encantada,
Liv T. B. Von Max.”
Poesia Delirante
Dê-me-te assim como o silêncio sói entregar-se à palavra
Corta-me a cor com suplício de amor ao sol amarrada
Beija-me corpo sem-fim, leque de jasmim - Como queimam as favas!
Chora-me no caminho errante
Mate-me, poesia delirante!
Corta-me a cor com suplício de amor ao sol amarrada
Beija-me corpo sem-fim, leque de jasmim - Como queimam as favas!
Chora-me no caminho errante
Mate-me, poesia delirante!
O Sorriso e o Ar
Sereno é o descanso do ar
Sólido na solidão da primavera sem flores
A espera de novos poemas de amores
Dados a quem for capaz de amar
Triste é a boca distante do amante,
Um arco-íris negro que sangra na noite,
Dispersa entre velhos sonhos infantes
De beber a luz como se veneno fosse
Entre tantos, nossos olhos se encontram
Carinhosamente descuidados,
Culpados por esse instante de música
E pelo fim da dor do sorriso calado
São ossos dados ao ar
Que arrebatado por delicado gesto
Despe, sonoramente, o desejo de não desejar
O perfume de sonhos (,) da alegria (,) do universo
O brilho ardente de seus dentes
Que despontam quentes na atmosfera vazia
De amor, antes ar, zéfiro, vento que esfria
A barriga, à luz a alma, toda a magia
Seu sorriso bebe a alegria de ser seu - só seu!
Tanta, que espanta dos corações de quem não canta
A dor que dorme em peito meu
Ida a primavera, para o ar se faz o pranto
Mas não tanto, pois do estio ao frio
A boca o estará permanentemente beijando
Sólido na solidão da primavera sem flores
A espera de novos poemas de amores
Dados a quem for capaz de amar
Triste é a boca distante do amante,
Um arco-íris negro que sangra na noite,
Dispersa entre velhos sonhos infantes
De beber a luz como se veneno fosse
Entre tantos, nossos olhos se encontram
Carinhosamente descuidados,
Culpados por esse instante de música
E pelo fim da dor do sorriso calado
São ossos dados ao ar
Que arrebatado por delicado gesto
Despe, sonoramente, o desejo de não desejar
O perfume de sonhos (,) da alegria (,) do universo
O brilho ardente de seus dentes
Que despontam quentes na atmosfera vazia
De amor, antes ar, zéfiro, vento que esfria
A barriga, à luz a alma, toda a magia
Seu sorriso bebe a alegria de ser seu - só seu!
Tanta, que espanta dos corações de quem não canta
A dor que dorme em peito meu
Ida a primavera, para o ar se faz o pranto
Mas não tanto, pois do estio ao frio
A boca o estará permanentemente beijando
quinta-feira, outubro 26, 2006
Pequenos Pássaros - 1° Capítulo
Dor.
Abro os olhos e tudo fica em silêncio. Mas o que foi isso? Respiro fundo e sento-me à cama. Não sei. Acabo de esquecer o que sonhei. É tão estranho. Olho para os dorsos de minhas mãos, viro-as e observo suas palmas. Nada. Nunca saberei o que se passou pela minha própria cabeça há tão pouco. Em vão, faço mais um esforço para recordar. Apenas sinto-me desconfortável. Não sei se pelo sonho que não lembro, ou por não conseguir me lembrar.
Os sonhos costumam se repetir? Tento dormir de novo, mas minha voz interna grita o desespero da noite. Não posso suportar mais a força de minhas pálpebras. Abro novamente os olhos. Um leve contorcionismo, e me levanto. Caminho até à mesa, passo as vistas pelo conto que ontem escrevi e, naturalmente, o rejeito. Não consigo mais.
Ando até a janela. Através dela, vejo pequenos pássaros que ciscam no jardim de uma manhã sem cores. As árvores estão sem frutos e sem folhas. Apenas um feixe de luz vence as nuvens e desenha no ar, entre os galhos da nogueira, uma atmosfera serena. Debaixo daquela luz, sinto a dor de uma bromélia que insiste em resistir ao inóspito tempo. Absorto nessa bucólica cena, contemplo a chegada de mais um outono.
Permaneço parado diante daquele quadro. Eu e tudo mais que não os pequenos pássaros. Eu e o mundo lá fora, estéril, plácido, morto. Mas nada é tão morto que não contenha pequenos pássaros.
Por alguns instantes brinco de desfocar minhas retinas. Ora o jardim, ora o vidro da janela. O jardim, a janela, o jardim, a janela. Um sutil movimento, e tudo se fecha, embaça. Tenho que limpar esses vidros. Tirar essa teia, consertar o lampião.
De súbito, os pássaros voam e o tapete de folhas se desfaz. A janela bruscamente se abre e faz sangrar um corte em minha testa. O vento traz galhos e levanta as cortinas. Herege, derruba Kafkas, Göethes e Kazantzakis. Sábio, preserva os russos e leva consigo, para todo sempre, meu conto da madrugada.
Com esforço, fecho a janela. Lá fora, o vento varre aos céus as tintas daquela preciosa tela. Em pouco tempo a terra estará molhada. Afortunada bromélia. Preciso fazer um curativo. Não posso mais viver aqui. A pintura agora está borrada. Tenho que voltar. Não posso mais fugir. É hora de saltar as janelas. É hora de ir para casa.
Abro os olhos e tudo fica em silêncio. Mas o que foi isso? Respiro fundo e sento-me à cama. Não sei. Acabo de esquecer o que sonhei. É tão estranho. Olho para os dorsos de minhas mãos, viro-as e observo suas palmas. Nada. Nunca saberei o que se passou pela minha própria cabeça há tão pouco. Em vão, faço mais um esforço para recordar. Apenas sinto-me desconfortável. Não sei se pelo sonho que não lembro, ou por não conseguir me lembrar.
Os sonhos costumam se repetir? Tento dormir de novo, mas minha voz interna grita o desespero da noite. Não posso suportar mais a força de minhas pálpebras. Abro novamente os olhos. Um leve contorcionismo, e me levanto. Caminho até à mesa, passo as vistas pelo conto que ontem escrevi e, naturalmente, o rejeito. Não consigo mais.
Ando até a janela. Através dela, vejo pequenos pássaros que ciscam no jardim de uma manhã sem cores. As árvores estão sem frutos e sem folhas. Apenas um feixe de luz vence as nuvens e desenha no ar, entre os galhos da nogueira, uma atmosfera serena. Debaixo daquela luz, sinto a dor de uma bromélia que insiste em resistir ao inóspito tempo. Absorto nessa bucólica cena, contemplo a chegada de mais um outono.
Permaneço parado diante daquele quadro. Eu e tudo mais que não os pequenos pássaros. Eu e o mundo lá fora, estéril, plácido, morto. Mas nada é tão morto que não contenha pequenos pássaros.
Por alguns instantes brinco de desfocar minhas retinas. Ora o jardim, ora o vidro da janela. O jardim, a janela, o jardim, a janela. Um sutil movimento, e tudo se fecha, embaça. Tenho que limpar esses vidros. Tirar essa teia, consertar o lampião.
De súbito, os pássaros voam e o tapete de folhas se desfaz. A janela bruscamente se abre e faz sangrar um corte em minha testa. O vento traz galhos e levanta as cortinas. Herege, derruba Kafkas, Göethes e Kazantzakis. Sábio, preserva os russos e leva consigo, para todo sempre, meu conto da madrugada.
Com esforço, fecho a janela. Lá fora, o vento varre aos céus as tintas daquela preciosa tela. Em pouco tempo a terra estará molhada. Afortunada bromélia. Preciso fazer um curativo. Não posso mais viver aqui. A pintura agora está borrada. Tenho que voltar. Não posso mais fugir. É hora de saltar as janelas. É hora de ir para casa.
Pequenos Pássaros - 2° Capítulo
A estação de trem está quase deserta. Sentado em um caixote de madeira, um velho negro fuma seu cachimbo, ao som de Drown In My Own Tears. Ele estende a mão e me pede algum trocado. Com cuidado para não tilintar, ponho a mão em meu bolso de moedas, sinto o peso de tantas para, em seguida, oferecer-lhe minha mão vazia. Em troca recebo um suave sorriso entre os pêlos amarelos de sua barba branca. “Sinto muito”.
Na extremidade da estação, apenas um casal. Ele, de sobretudo, segura o jornal embaixo de um dos braços. Ela, agarrada ao braço livre do marido, se esforça para conter o próprio chapéu e se proteger da chuva.
O trem demora. Um filete de sangue supera o esparadrapo e desce sobre meu rosto. Pego no bolso do paletó um lenço e limpo minha testa. Do outro bolso retiro um antigo retrato já desbotado. Nele, meu pai empresta um de seus melancólicos olhares. Faz tanto tempo.
Ao largo, ouço o apito do trem. Finalmente, a máquina freia estrondosa e abafa o jazz do velho negro. O casal precipitadamente salta para dentro de um dos vagões. O chapéu dela voa e é carregado pelo vento. Ele tenta reavê-lo, mas é tarde demais, o trem está partindo.
A viagem dura cinco horas. Hesse faz parecer bem menos. Chego à cidade sentindo um misto de euforia nostálgica e depressão desapegada, nitidamente influenciado pelo Lobo da Estepe. Não posso mais!
Desço do trem e vejo que o casal que embarcou comigo também desce. Agora, ela usa o chapéu dele, cuidadosamente improvisado, adornado com uma pequena fita em forma de laçarote.
Respiro fundo. Observo como tudo está diferente. Oito anos, tudo tão diferente. Meus passos são lentos demais para acompanhar o ritmo dessa gente.
Ando até o bar e, nesse curto trajeto, sou atropelado algumas vezes. “Um café, por favor”. Um café aparece. Nenhum olhar cruzou com o meu. “Açúcar? Ah, sim, açúcar”. Enquanto me sirvo, noto pequenos círculos vermelhos se expandirem dentro do açucareiro. Levo minha mão à testa. Estou sangrando novamente. “O toillete?”
Retiro o esparadrapo e dispenso um breve tempo diante do espelho. “Maldita janela! Uma janela não pode se abrir assim tão de repente. Assim como alguns livros não podem ser abertos de repente. É preciso estar preparado para eles, é preciso saber como domá-los”. Ao se deparar com certas verdades, aquele que não as suporta sucumbe perante as janelas que se abrem. “Maldita janela, maldita literatura. É mais seguro enxergar o mundo como um jardim retratado num quadro renascentista, do que desbravar os mistérios do espírito humano. Desde que, é obvio, não tenha janelas. Odeio janelas”.
Enquanto, diante de minha ferida, divago sobre literatura e janelas, percebo que o sangue manchou minha gravata. Pelo espelho, vejo um homem entrar no banheiro. Ele pára, me observa com desconfiança e me oferece um sorriso. Um desses sorrisos gratuitos entre estranhos, desnecessários, que refletem uma falsa simpatia, ou mesmo revelam a subserviência interessada dos subalternos. Tenho que sair daqui. “É sangue? Com gelo sai”. Não respeito pessoas observadoras. Com desdém, saio do banheiro sem responder.
Volto ao bar. “Gelo somente acompanhado de whisky? Tudo bem, oito anos, por favor”. Oito anos, faz tanto tempo. O gelo não surte efeito, o sangue gostou da minha gravata. Bebo a dose em um gole. Preciso de um cigarro.
Do balcão, vejo o homem sair do banheiro. Ele pára assim que ultrapassa a porta, ajeita seu paletó e oferece o mesmo sorriso forçado ao primeiro passante. Definitivamente, não gosto de pessoas assim. O cigarro fica para depois.
Ando em direção à Avenida Pederneiros. Minhas primeiras lembranças têm essa avenida como cenário. Eu devia ter oito ou dez anos de idade. Não havia tantas casas, poucos comércios por perto. A rua era de terra e bem mais escura e larga do que agora. Aqui meu pai costumava freqüentar as reuniões do partido. Um dia, escondido, eu o segui.
Lembro-me perfeitamente. Sou capaz de ver um homem agarrado a este poste a gritar palavras de ordem à pequena multidão de operários. Não entendo o que ele diz, mas, certamente, nada muito diferente do que Zola, em Germinal, ou Gorki, em Mãe ou Pequenos Burgueses, disseram. O que importa é a imagem fantástica que guardo em minha memória até hoje. Neste poste. Neste, bem à minha frente, o homem que se equilibrava olhou em meus olhos e berrou. Incrível como as remotas lembranças sobrevivem em câmera lenta. Aquela foi a primeira vez que alguém olhou no fundo dos meus olhos. Nunca irei esquecer esse dia.
Estranho sentimento daquele que mergulha em recordações, mesmo quando o homem do sorriso calculado o segura pelo braço. “Senhor? Senhor, essa fotografia é sua?” O que é isso? “Não, é meu pai... Quero dizer, sim, é minha”. Arranco o retrato de sua mão. Mais um sorriso estúpido, agora acompanhado daquele olhar que transparece o regozijo dos pequenos espíritos quando praticam uma boa ação, e tchau. Espero nunca mais ver esse homem, detesto pessoas solícitas. Me viro e sigo caminhando. O homem lamenta, sorri e vai embora.
Na extremidade da estação, apenas um casal. Ele, de sobretudo, segura o jornal embaixo de um dos braços. Ela, agarrada ao braço livre do marido, se esforça para conter o próprio chapéu e se proteger da chuva.
O trem demora. Um filete de sangue supera o esparadrapo e desce sobre meu rosto. Pego no bolso do paletó um lenço e limpo minha testa. Do outro bolso retiro um antigo retrato já desbotado. Nele, meu pai empresta um de seus melancólicos olhares. Faz tanto tempo.
Ao largo, ouço o apito do trem. Finalmente, a máquina freia estrondosa e abafa o jazz do velho negro. O casal precipitadamente salta para dentro de um dos vagões. O chapéu dela voa e é carregado pelo vento. Ele tenta reavê-lo, mas é tarde demais, o trem está partindo.
A viagem dura cinco horas. Hesse faz parecer bem menos. Chego à cidade sentindo um misto de euforia nostálgica e depressão desapegada, nitidamente influenciado pelo Lobo da Estepe. Não posso mais!
Desço do trem e vejo que o casal que embarcou comigo também desce. Agora, ela usa o chapéu dele, cuidadosamente improvisado, adornado com uma pequena fita em forma de laçarote.
Respiro fundo. Observo como tudo está diferente. Oito anos, tudo tão diferente. Meus passos são lentos demais para acompanhar o ritmo dessa gente.
Ando até o bar e, nesse curto trajeto, sou atropelado algumas vezes. “Um café, por favor”. Um café aparece. Nenhum olhar cruzou com o meu. “Açúcar? Ah, sim, açúcar”. Enquanto me sirvo, noto pequenos círculos vermelhos se expandirem dentro do açucareiro. Levo minha mão à testa. Estou sangrando novamente. “O toillete?”
Retiro o esparadrapo e dispenso um breve tempo diante do espelho. “Maldita janela! Uma janela não pode se abrir assim tão de repente. Assim como alguns livros não podem ser abertos de repente. É preciso estar preparado para eles, é preciso saber como domá-los”. Ao se deparar com certas verdades, aquele que não as suporta sucumbe perante as janelas que se abrem. “Maldita janela, maldita literatura. É mais seguro enxergar o mundo como um jardim retratado num quadro renascentista, do que desbravar os mistérios do espírito humano. Desde que, é obvio, não tenha janelas. Odeio janelas”.
Enquanto, diante de minha ferida, divago sobre literatura e janelas, percebo que o sangue manchou minha gravata. Pelo espelho, vejo um homem entrar no banheiro. Ele pára, me observa com desconfiança e me oferece um sorriso. Um desses sorrisos gratuitos entre estranhos, desnecessários, que refletem uma falsa simpatia, ou mesmo revelam a subserviência interessada dos subalternos. Tenho que sair daqui. “É sangue? Com gelo sai”. Não respeito pessoas observadoras. Com desdém, saio do banheiro sem responder.
Volto ao bar. “Gelo somente acompanhado de whisky? Tudo bem, oito anos, por favor”. Oito anos, faz tanto tempo. O gelo não surte efeito, o sangue gostou da minha gravata. Bebo a dose em um gole. Preciso de um cigarro.
Do balcão, vejo o homem sair do banheiro. Ele pára assim que ultrapassa a porta, ajeita seu paletó e oferece o mesmo sorriso forçado ao primeiro passante. Definitivamente, não gosto de pessoas assim. O cigarro fica para depois.
Ando em direção à Avenida Pederneiros. Minhas primeiras lembranças têm essa avenida como cenário. Eu devia ter oito ou dez anos de idade. Não havia tantas casas, poucos comércios por perto. A rua era de terra e bem mais escura e larga do que agora. Aqui meu pai costumava freqüentar as reuniões do partido. Um dia, escondido, eu o segui.
Lembro-me perfeitamente. Sou capaz de ver um homem agarrado a este poste a gritar palavras de ordem à pequena multidão de operários. Não entendo o que ele diz, mas, certamente, nada muito diferente do que Zola, em Germinal, ou Gorki, em Mãe ou Pequenos Burgueses, disseram. O que importa é a imagem fantástica que guardo em minha memória até hoje. Neste poste. Neste, bem à minha frente, o homem que se equilibrava olhou em meus olhos e berrou. Incrível como as remotas lembranças sobrevivem em câmera lenta. Aquela foi a primeira vez que alguém olhou no fundo dos meus olhos. Nunca irei esquecer esse dia.
Estranho sentimento daquele que mergulha em recordações, mesmo quando o homem do sorriso calculado o segura pelo braço. “Senhor? Senhor, essa fotografia é sua?” O que é isso? “Não, é meu pai... Quero dizer, sim, é minha”. Arranco o retrato de sua mão. Mais um sorriso estúpido, agora acompanhado daquele olhar que transparece o regozijo dos pequenos espíritos quando praticam uma boa ação, e tchau. Espero nunca mais ver esse homem, detesto pessoas solícitas. Me viro e sigo caminhando. O homem lamenta, sorri e vai embora.
Pequenos Pássaros - 3° Capítulo
Lembro-me que à tarde, quando o sino da igreja badalava, eu abandonava os livros e corria por essas ruas até a fábrica de sapatos. Lá esperava meu pai para ajudá-lo a carregar seus papéis de volta para casa. Certa vez, não cheguei a tempo de encontrá-lo. Foi um desses dias na vida de uma criança em que alguns acontecimentos singelos assumem proporções incomensuráveis. Um dia qualquer que levamos para sempre dentro de nós.
De cima da árvore, era uma rara tarde de pique-esconde. Do alto, era fácil manter o controle da situação. Se eles viessem pelo mato, eu correria pela viela até o beco dos soldados. Se viessem pelo campinho, eu daria a volta pela linha do trem e chegaria ao muro antes mesmo de ser visto. Se viessem pelo outro lado, por trás da barbearia, seria mais difícil, mas ainda assim sobravam pernas para chegar à frente. O problema é que nada disso adiantou quando o homem que colhia imagens e parava o tempo chegou.
Era um desses fotógrafos lambe-lambe, desses que se escondem por baixo de um pano preto para melhor capturar a luz. Eu já havia lido sobre esses fotógrafos, mas era a primeira vez que minha cidade via um. Fiquei fascinado. Estava tão entregue, tão hipnotizado por aquela magia, que nem percebi quando uma criança descobriu meu esconderijo. “Pique um, dois, três, Camilo!”
Desci da árvore, me aproximei com curiosidade e sentei ao lado da câmera escura. O fotógrafo não disse uma palavra. Deu-me apenas um olhar e pronto. Para quê palavras? Explosões, fumaças e olhares já são suficientes.
Em determinado momento, com um gesto, ele me chamou. Entrei debaixo do pano preto e vi, através da lente, uma menina que graciosamente segurava uma flor em seu colo. Eu não tinha idade para me interessar por meninas, aliás, à época, não passavam de um estorvo em minha vida. O fato é que fiquei maravilhado como, através daquela máquina, era possível apreender seu olhar. Por um instante, a câmera permitia reter o olhar da menina contra o meu. Aquilo fez eclodir em mim um turbilhão de sentimentos que dispensariam as mais belas poesias. Não que houvesse beleza em seu olhar, pelo contrário. Em verdade, ele revelava uma dor que ela disfarçava muito bem através de seu lindo sorriso. Naquele dia descobri que eu era capaz de ler as pessoas através de seus olhos.
O tempo voou de forma magnífica enquanto eu mergulhava nos olhares de cavalheiros, meninos, noivas e senhoras que sorriam para uma caixa de madeira. Vi insegurança travestida de prepotência, dúvidas atrás de barbas, medo sob fardas, angústia disfarçada de alegria, solidão debaixo de véus. Só dei conta de mim quando o fotógrafo começou a recolher seu equipamento para ir embora. Essa hora o sino da igreja já havia badalado há muito.
Corri para casa. Eu precisava olhar nos olhos de meu pai. Quando cheguei, ele já estava jantando. Contei-lhe tudo quanto tinha visto. O fantástico mundo das imagens, o universo que existe por trás de uma foto e os dizeres que a luz dos olhos transmite. Mas ele não parecia me ouvir. E não ouvia mesmo.
Com os braços em volta do prato, ele arrancava pedaços de pão com os dentes, antes mesmo de engolir o que tinha em sua boca. Lambuzava seu bigode e batia o copo na mesa fazendo saltar de dentro a água. “Estamos em greve. Hoje demos início à luta revolucionária, um pequeno passo em busca dos nossos direitos foi dado... Garoto, você não foi à fábrica... leu alguma coisa hoje? Não? Pois bem, coma, leia mais de seu livro e vá dormir”. Sem receber um olhar em troca, fiz o que ele mandou.
E assim concluí o dia que, talvez, tenha sido o mais feliz de nossas vidas. Da minha vida, e da do meu pai.
Recordo-me desse dia, parado em frente à vitrine de uma loja que conserta brinquedos. Lá dentro, uma mulher aponta o dedo para a própria cabeça e faz sinal para que eu entre. Não tenho reflexo de recusar. “O senhor está sangrando. Está tudo bem?” Finjo que não escuto e a encaro com frieza. “Senhor, tudo bem?” Após alguns segundos de olhar perdido, tiro do bolso o já surrado lenço e o esfrego com raiva pelo meu rosto até sentir o gosto de sangue em minha boca. Arranco das mãos da mulher uma pequena ampulheta, a embrulho em meu lenço, jogo algumas moedas sobre o balcão e continuo meu caminho de volta ao passado.
De cima da árvore, era uma rara tarde de pique-esconde. Do alto, era fácil manter o controle da situação. Se eles viessem pelo mato, eu correria pela viela até o beco dos soldados. Se viessem pelo campinho, eu daria a volta pela linha do trem e chegaria ao muro antes mesmo de ser visto. Se viessem pelo outro lado, por trás da barbearia, seria mais difícil, mas ainda assim sobravam pernas para chegar à frente. O problema é que nada disso adiantou quando o homem que colhia imagens e parava o tempo chegou.
Era um desses fotógrafos lambe-lambe, desses que se escondem por baixo de um pano preto para melhor capturar a luz. Eu já havia lido sobre esses fotógrafos, mas era a primeira vez que minha cidade via um. Fiquei fascinado. Estava tão entregue, tão hipnotizado por aquela magia, que nem percebi quando uma criança descobriu meu esconderijo. “Pique um, dois, três, Camilo!”
Desci da árvore, me aproximei com curiosidade e sentei ao lado da câmera escura. O fotógrafo não disse uma palavra. Deu-me apenas um olhar e pronto. Para quê palavras? Explosões, fumaças e olhares já são suficientes.
Em determinado momento, com um gesto, ele me chamou. Entrei debaixo do pano preto e vi, através da lente, uma menina que graciosamente segurava uma flor em seu colo. Eu não tinha idade para me interessar por meninas, aliás, à época, não passavam de um estorvo em minha vida. O fato é que fiquei maravilhado como, através daquela máquina, era possível apreender seu olhar. Por um instante, a câmera permitia reter o olhar da menina contra o meu. Aquilo fez eclodir em mim um turbilhão de sentimentos que dispensariam as mais belas poesias. Não que houvesse beleza em seu olhar, pelo contrário. Em verdade, ele revelava uma dor que ela disfarçava muito bem através de seu lindo sorriso. Naquele dia descobri que eu era capaz de ler as pessoas através de seus olhos.
O tempo voou de forma magnífica enquanto eu mergulhava nos olhares de cavalheiros, meninos, noivas e senhoras que sorriam para uma caixa de madeira. Vi insegurança travestida de prepotência, dúvidas atrás de barbas, medo sob fardas, angústia disfarçada de alegria, solidão debaixo de véus. Só dei conta de mim quando o fotógrafo começou a recolher seu equipamento para ir embora. Essa hora o sino da igreja já havia badalado há muito.
Corri para casa. Eu precisava olhar nos olhos de meu pai. Quando cheguei, ele já estava jantando. Contei-lhe tudo quanto tinha visto. O fantástico mundo das imagens, o universo que existe por trás de uma foto e os dizeres que a luz dos olhos transmite. Mas ele não parecia me ouvir. E não ouvia mesmo.
Com os braços em volta do prato, ele arrancava pedaços de pão com os dentes, antes mesmo de engolir o que tinha em sua boca. Lambuzava seu bigode e batia o copo na mesa fazendo saltar de dentro a água. “Estamos em greve. Hoje demos início à luta revolucionária, um pequeno passo em busca dos nossos direitos foi dado... Garoto, você não foi à fábrica... leu alguma coisa hoje? Não? Pois bem, coma, leia mais de seu livro e vá dormir”. Sem receber um olhar em troca, fiz o que ele mandou.
E assim concluí o dia que, talvez, tenha sido o mais feliz de nossas vidas. Da minha vida, e da do meu pai.
Recordo-me desse dia, parado em frente à vitrine de uma loja que conserta brinquedos. Lá dentro, uma mulher aponta o dedo para a própria cabeça e faz sinal para que eu entre. Não tenho reflexo de recusar. “O senhor está sangrando. Está tudo bem?” Finjo que não escuto e a encaro com frieza. “Senhor, tudo bem?” Após alguns segundos de olhar perdido, tiro do bolso o já surrado lenço e o esfrego com raiva pelo meu rosto até sentir o gosto de sangue em minha boca. Arranco das mãos da mulher uma pequena ampulheta, a embrulho em meu lenço, jogo algumas moedas sobre o balcão e continuo meu caminho de volta ao passado.
Pequenos Pássaros - 4° Capítulo
Paro à porta da cafeteria ao pressintir um vulto atrás de mim. Giro lentamente o pescoço e vejo uma senhora acompanhada de um homem. De viés, cedo passagem apenas para que não notem o sangue que trago sobre o rosto. “Obrigado, cavalheiro”.
Vejam só, o mesmo casal da estação de trem. O casal protagonista da mais doce cena da minha viagem agora me dá o privilégio de compartilhar de seu ambiente durante um breve café. Me sinto lisongeado. Sem dúvida, há muito o que aprender com pessoas tão sensíveis. Não sei se Julien, de Stendhal, dispensaria tamanho trato com sua amada. Entregar-lhe seu próprio chapéu, não antes de enfeitá-lo com um ridículo laçarote, demonstra não somente rara cordialidade, mas uma estúpida polidez, própria daqueles que tentam bajular o coração alheio. Gente hipócrita! Sou capaz de arrancar minhas unhas se não estou com a verdade. Casais como esses são responsáveis pela proliferação de bordéis e servem, quando muito, como matéria-prima para romances apócrifos.
Vou ao toillete, não faço questão de olhares estupefatos como o do garçom. Lavo meu rosto e deixo escorrer a tinta vermelha ralo adentro. Estou pronto. É hora de abrir as janelas daqueles que se recusam a enxergar.
Saio do banheiro, acendo um cigarro e sento-me à mesa mais próxima do casal. “Cappuccino, por favor”. Ela, debruçada sobre os cotovelos, finge admiração pelo monólogo do marido. Ele, efusivo nos gestos, se gaba de algum acontecimento envolvendo notas promissórias ou coisa parecida. Após algumas risadas, educadamente, ele se retira ao toillete. Ela sorri, antes de pegar em sua bolsa um pequeno estojo de maquiagens para ocupar as mãos.
Apago o cigarro, levanto e, de chofre, sento-me à sua mesa. “Preciso de um olhar”. Ela deixa o batom cair e olha para todos os lados gritando em silêncio por socorro. Seguro sua mão e sinto seu receio de enfrentar meus olhos. Ela se desvencilha e grita pelo garçom. Daqui posso sentir a palpitação em seu peito. Seguro sua mão mais uma vez, desta vez com força, e a obrigo a me encarar por alguns instantes. Assustada, seus olhos ocilam entre os meus. “Volte para o seu lugar, volte para casa”.
Após ouvir isso, a senhora faz um gesto para que o garçom não se preocupe com o inconveniente e retorne aos seus afazeres. “De quem a senhora foge?” Ela novamente faz força para soltar sua mão da minha. “Vejo que a senhora não é capaz de perceber... Hoje viajamos no mesmo trem, mas por caminhos inversos. Eu já estive onde a senhora está, pensei que eu bastaria, que dormiria bem, longe do meu passado. Não, nada disso é verdade, nunca nos livraremos de nós mesmos. Nunca. Mesmo no limite, O Sonho de um Homem Ridículo sempre vem nos socorrer”. Aperto mais forte sua mão até as pontas de seus dedos ficarem vermelhas. “Eu voltei para apagar meu passado. Eu vou revelar ao mundo as cores do meu universo. Faça o mesmo, pobre criatura... faça o mesmo”.
Grande parte das pessoas que nos cercam, diante de um acontecimento como esse, reagiriam segundo cômodas convenções sociais desde muito estabelecidas. “Cuida-se de um tratante! Um louco! Uma mente insana, sejamos compreensíveis...” Há outras, não tantas e nem tão singelas, dotadas da mais autêntica nobreza de espírito, que se perguntariam: “Quem aqui é o louco? Estará ele com a razão?” Ainda há aqueles que vacilam entre uma reação e outra, para os quais Dante previu estar guardado o mais cruel recanto do inferno. Esta senhora diante de mim pertence a este último.
Com os lábios tremendo, ela engole seco para não chorar. Seu queixo se movimenta de forma estranha até ela travar as próprias bochechas com os dentes. Nesse momento, descanso meus dedos e deixo sua mão fluir de volta para o seu pequeno mundo de faz-de-conta. Saco do bolso a pequena ampulheta embrulhada em meu lenço e a deixo sobre a mesa. Antes de me levantar, a satisfação de pensar que seu chapeuzinho está estraçalhado nos trilhos do trem me tira um sorriso. Entre a dança do enfeite que pende sob a aba de seu chapéu, a senhora me observa com pavor.
Já em minha mesa, vejo o bom marido retornar do toillete e agachar-se para buscar o batom caído. Após o gracejo de praxe, ele percebe a ampulheta e questiona a respeito do objeto. Antes que a areia se esvaia, a senhora diz se tratar de um presente. Um presente dela para ele.
Vejam só, o mesmo casal da estação de trem. O casal protagonista da mais doce cena da minha viagem agora me dá o privilégio de compartilhar de seu ambiente durante um breve café. Me sinto lisongeado. Sem dúvida, há muito o que aprender com pessoas tão sensíveis. Não sei se Julien, de Stendhal, dispensaria tamanho trato com sua amada. Entregar-lhe seu próprio chapéu, não antes de enfeitá-lo com um ridículo laçarote, demonstra não somente rara cordialidade, mas uma estúpida polidez, própria daqueles que tentam bajular o coração alheio. Gente hipócrita! Sou capaz de arrancar minhas unhas se não estou com a verdade. Casais como esses são responsáveis pela proliferação de bordéis e servem, quando muito, como matéria-prima para romances apócrifos.
Vou ao toillete, não faço questão de olhares estupefatos como o do garçom. Lavo meu rosto e deixo escorrer a tinta vermelha ralo adentro. Estou pronto. É hora de abrir as janelas daqueles que se recusam a enxergar.
Saio do banheiro, acendo um cigarro e sento-me à mesa mais próxima do casal. “Cappuccino, por favor”. Ela, debruçada sobre os cotovelos, finge admiração pelo monólogo do marido. Ele, efusivo nos gestos, se gaba de algum acontecimento envolvendo notas promissórias ou coisa parecida. Após algumas risadas, educadamente, ele se retira ao toillete. Ela sorri, antes de pegar em sua bolsa um pequeno estojo de maquiagens para ocupar as mãos.
Apago o cigarro, levanto e, de chofre, sento-me à sua mesa. “Preciso de um olhar”. Ela deixa o batom cair e olha para todos os lados gritando em silêncio por socorro. Seguro sua mão e sinto seu receio de enfrentar meus olhos. Ela se desvencilha e grita pelo garçom. Daqui posso sentir a palpitação em seu peito. Seguro sua mão mais uma vez, desta vez com força, e a obrigo a me encarar por alguns instantes. Assustada, seus olhos ocilam entre os meus. “Volte para o seu lugar, volte para casa”.
Após ouvir isso, a senhora faz um gesto para que o garçom não se preocupe com o inconveniente e retorne aos seus afazeres. “De quem a senhora foge?” Ela novamente faz força para soltar sua mão da minha. “Vejo que a senhora não é capaz de perceber... Hoje viajamos no mesmo trem, mas por caminhos inversos. Eu já estive onde a senhora está, pensei que eu bastaria, que dormiria bem, longe do meu passado. Não, nada disso é verdade, nunca nos livraremos de nós mesmos. Nunca. Mesmo no limite, O Sonho de um Homem Ridículo sempre vem nos socorrer”. Aperto mais forte sua mão até as pontas de seus dedos ficarem vermelhas. “Eu voltei para apagar meu passado. Eu vou revelar ao mundo as cores do meu universo. Faça o mesmo, pobre criatura... faça o mesmo”.
Grande parte das pessoas que nos cercam, diante de um acontecimento como esse, reagiriam segundo cômodas convenções sociais desde muito estabelecidas. “Cuida-se de um tratante! Um louco! Uma mente insana, sejamos compreensíveis...” Há outras, não tantas e nem tão singelas, dotadas da mais autêntica nobreza de espírito, que se perguntariam: “Quem aqui é o louco? Estará ele com a razão?” Ainda há aqueles que vacilam entre uma reação e outra, para os quais Dante previu estar guardado o mais cruel recanto do inferno. Esta senhora diante de mim pertence a este último.
Com os lábios tremendo, ela engole seco para não chorar. Seu queixo se movimenta de forma estranha até ela travar as próprias bochechas com os dentes. Nesse momento, descanso meus dedos e deixo sua mão fluir de volta para o seu pequeno mundo de faz-de-conta. Saco do bolso a pequena ampulheta embrulhada em meu lenço e a deixo sobre a mesa. Antes de me levantar, a satisfação de pensar que seu chapeuzinho está estraçalhado nos trilhos do trem me tira um sorriso. Entre a dança do enfeite que pende sob a aba de seu chapéu, a senhora me observa com pavor.
Já em minha mesa, vejo o bom marido retornar do toillete e agachar-se para buscar o batom caído. Após o gracejo de praxe, ele percebe a ampulheta e questiona a respeito do objeto. Antes que a areia se esvaia, a senhora diz se tratar de um presente. Um presente dela para ele.
Pequenos Pássaros - 5° Capítulo
Com a greve na fábrica de sapatos outras eclodiram pela cidade. Temendo represálias, o partido adotou medidas de segurança para evitar que seus líderes sofressem retaliações da polícia. Uma das medidas obrigou meu pai a enterrar os livros de sua biblioteca em um buraco no quintal de nossa casa.
Sem a espada sobre minha cabeça, passei os dias sentado ao lado do fotógrafo da câmera escura. Sem mais ser obrigado a ler páginas e páginas de livros, pude fazer o que eu realmente queria, viver o mundo real.
Meu pai sempre me dizia que o mundo é dos homens de letras, e por isso me obrigava a ler. Mas agora eu pergunto: qual mundo? O mundo de abstrações, de idéias inconcebíveis, de vidas imaginadas, de seres fantásticos, de fortalezas mágicas, de objetos encantados? Sim! Esse é o mundo dos homens de letras! Um mundo irreal... um mundo travestido. Um mundo de signos ao qual não pertencemos. Um mundo que flui por uma dimensão oculta, sem lógica e sem razão.
A única realidade dos livros é a morte, o verdadeiro sono sob a terra. Os livros morreram! Foram enterrados em meu quintal. Amém. Sei que não me bastam as palavras, mas os santos sabem como sonhei com o epitáfio: “Aqui jaz a perdição da humanidade”.
Não! A realidade dos livros é irreal! Foram enterrados, mas não estão mortos! São como sementes... estão vivos dentro de mim... podem brotar a qualquer momento. Não sou capaz de sustentar esse fardo! Não! Os livros morreram sua morte inventada... até quando serei torturado pelas palavras?
Em um daqueles dias, quando ao lado do fotógrafo, vi meu pai atravessar a rua diante de nós. Ele trazia dúzias de panfletos escondidos em seu casaco. Eram escritos revolucionários, dizeres inflamados sob a forma de poesia. Lembro-me que um deles assim dizia:
“Quando retirarmos do peito este punhal martelado,
A música retumbará vermelha entre as foices do campo
E em cada canto a centelha do povo alado
Provará ao tempo que não estou sonhando
Neste dia, me verás como tu,
Serei igual a ti,
Terei para mim que sou o todo
Enquanto o todo em ti és apenas tu
Uma vez que somos povo
Somos sós
Somos sóis
Somos nós
Somos o silêncio
Somos a voz
Somos o mar do Leviatã
Somos!
Soamos”
Respirei fundo para tomar coragem e corri até meu pai para lhe pedir que deixasse ser fotografado. Eu estaria debaixo do pano preto para olhar em seus olhos, para conhecê-lo, para enxergar sua alma. Eu sonhava com aquilo. Creio que não é preciso dizer que sua recusa foi peremptória. “Meus camaradas me esperam, não tenho tempo para bobagens!”
Há vezes em que o mundo real se comporta como o mundo dos livros. Isso ocorre quando os acontecimentos se desenrolam no limiar do imaginário. É como uma bolinha de sabão ou o bater de asas de uma borboleta. Será que isso realmente aconteceu? Eu só posso estar sonhando... Não... é real, é maravilhoso porque incompreensível. Aí está a beleza... Penso que aquele vácuo em minha barriga nasceu de algo assim. Senti-me como se tivesse percorrido todo o universo em busca da mais remota estrela para engolir um pedaço de sua luz.
“Tudo bem, garoto. Isso não vai demorar muito, vai?” Como um raio, saltei para trás da câmera escura. Ele mudou de idéia. Mas por quê? Não me importa, quero aproveitar esse momento. Quero um olhar, um olhar apenas.
Meu pai não sabia como se comportar diante da câmera. Da mesma forma que lhe era doloroso conversar sobre trivialidades, nunca sabia onde colocar as próprias mãos. Optou por deixá-las guardadas em seus bolsos.
“Olhe para essa lente. Olhe para mim... O que é isso? Não pode ser tão simples... Como não pude perceber?”
Nada vi nos olhos de meu pai. Parece estranho, mas ele tinha um espírito tão singelo que fui incapaz de compreender. É mais ou menos o que acontece quando tentamos ler um livro e duas pessoas conversam ao nosso lado. A fala de apenas duas pessoas é capaz de penetrar em nossas mentes até não sabermos mais o que é deste mundo e o que faz parte do mundo dos livros. Por outro lado, quando lemos cercados de muitas pessoas falando ao mesmo tempo, o mundo real se torna incompreensível, e o mundo dos livros floresce para nós. Quanto mais conturbada é a alma, mais evidente é o ser que ela compõe. Quanto mais simples, mais obscuro e indecifrável ele se apresenta.
Depois que o fotografei, os panfletos que meu pai trazia caíram de seu casaco. Ele se abaixou rapidamente para apanhá-los, mas um dos papéis voou até os pés do fotógrafo lambe-lambe. Ele o leu, levantou a cabeça e rasgou a poesia. Meu pai tentou correr, mas o fotógrafo o deteve pelo braço. Era um agente disfarçado. Nada mais poderia ser feito. Graças a mim, meu pai passou os dez anos seguintes em uma prisão.
Além deste retrato que dorme desbotado em meu bolso, daquele dia, ainda trago na lembrança o que restou do panfleto rasgado pelo fotógrafo.
“Uma vez que s
Somos sós
Somos só
So
S”
Sem a espada sobre minha cabeça, passei os dias sentado ao lado do fotógrafo da câmera escura. Sem mais ser obrigado a ler páginas e páginas de livros, pude fazer o que eu realmente queria, viver o mundo real.
Meu pai sempre me dizia que o mundo é dos homens de letras, e por isso me obrigava a ler. Mas agora eu pergunto: qual mundo? O mundo de abstrações, de idéias inconcebíveis, de vidas imaginadas, de seres fantásticos, de fortalezas mágicas, de objetos encantados? Sim! Esse é o mundo dos homens de letras! Um mundo irreal... um mundo travestido. Um mundo de signos ao qual não pertencemos. Um mundo que flui por uma dimensão oculta, sem lógica e sem razão.
A única realidade dos livros é a morte, o verdadeiro sono sob a terra. Os livros morreram! Foram enterrados em meu quintal. Amém. Sei que não me bastam as palavras, mas os santos sabem como sonhei com o epitáfio: “Aqui jaz a perdição da humanidade”.
Não! A realidade dos livros é irreal! Foram enterrados, mas não estão mortos! São como sementes... estão vivos dentro de mim... podem brotar a qualquer momento. Não sou capaz de sustentar esse fardo! Não! Os livros morreram sua morte inventada... até quando serei torturado pelas palavras?
Em um daqueles dias, quando ao lado do fotógrafo, vi meu pai atravessar a rua diante de nós. Ele trazia dúzias de panfletos escondidos em seu casaco. Eram escritos revolucionários, dizeres inflamados sob a forma de poesia. Lembro-me que um deles assim dizia:
“Quando retirarmos do peito este punhal martelado,
A música retumbará vermelha entre as foices do campo
E em cada canto a centelha do povo alado
Provará ao tempo que não estou sonhando
Neste dia, me verás como tu,
Serei igual a ti,
Terei para mim que sou o todo
Enquanto o todo em ti és apenas tu
Uma vez que somos povo
Somos sós
Somos sóis
Somos nós
Somos o silêncio
Somos a voz
Somos o mar do Leviatã
Somos!
Soamos”
Respirei fundo para tomar coragem e corri até meu pai para lhe pedir que deixasse ser fotografado. Eu estaria debaixo do pano preto para olhar em seus olhos, para conhecê-lo, para enxergar sua alma. Eu sonhava com aquilo. Creio que não é preciso dizer que sua recusa foi peremptória. “Meus camaradas me esperam, não tenho tempo para bobagens!”
Há vezes em que o mundo real se comporta como o mundo dos livros. Isso ocorre quando os acontecimentos se desenrolam no limiar do imaginário. É como uma bolinha de sabão ou o bater de asas de uma borboleta. Será que isso realmente aconteceu? Eu só posso estar sonhando... Não... é real, é maravilhoso porque incompreensível. Aí está a beleza... Penso que aquele vácuo em minha barriga nasceu de algo assim. Senti-me como se tivesse percorrido todo o universo em busca da mais remota estrela para engolir um pedaço de sua luz.
“Tudo bem, garoto. Isso não vai demorar muito, vai?” Como um raio, saltei para trás da câmera escura. Ele mudou de idéia. Mas por quê? Não me importa, quero aproveitar esse momento. Quero um olhar, um olhar apenas.
Meu pai não sabia como se comportar diante da câmera. Da mesma forma que lhe era doloroso conversar sobre trivialidades, nunca sabia onde colocar as próprias mãos. Optou por deixá-las guardadas em seus bolsos.
“Olhe para essa lente. Olhe para mim... O que é isso? Não pode ser tão simples... Como não pude perceber?”
Nada vi nos olhos de meu pai. Parece estranho, mas ele tinha um espírito tão singelo que fui incapaz de compreender. É mais ou menos o que acontece quando tentamos ler um livro e duas pessoas conversam ao nosso lado. A fala de apenas duas pessoas é capaz de penetrar em nossas mentes até não sabermos mais o que é deste mundo e o que faz parte do mundo dos livros. Por outro lado, quando lemos cercados de muitas pessoas falando ao mesmo tempo, o mundo real se torna incompreensível, e o mundo dos livros floresce para nós. Quanto mais conturbada é a alma, mais evidente é o ser que ela compõe. Quanto mais simples, mais obscuro e indecifrável ele se apresenta.
Depois que o fotografei, os panfletos que meu pai trazia caíram de seu casaco. Ele se abaixou rapidamente para apanhá-los, mas um dos papéis voou até os pés do fotógrafo lambe-lambe. Ele o leu, levantou a cabeça e rasgou a poesia. Meu pai tentou correr, mas o fotógrafo o deteve pelo braço. Era um agente disfarçado. Nada mais poderia ser feito. Graças a mim, meu pai passou os dez anos seguintes em uma prisão.
Além deste retrato que dorme desbotado em meu bolso, daquele dia, ainda trago na lembrança o que restou do panfleto rasgado pelo fotógrafo.
“Uma vez que s
Somos sós
Somos só
So
S”
Pequenos Pássaros - 6° Capítulo
Agora que estou diante da casa onde vivi, minha ferida volta a sangrar. Volto no tempo, volto ao lar após oito anos de solidão. Mais noventa e dois e eu seria um Buendía. Mais perguntas e eu teria menos respostas. Mais janelas, menos saídas. Mais livros que não escrevi, menos correntes presas aos meus pés. Mas nada disso importa. Quero viver no silêncio, nas águas paradas que, dizem, são as mais profundas.
Durante oito anos, permaneci isolado em uma casa no campo para escrever um livro em homenagem a meu pai. Mas não consegui. Me obriguei a ler obras que jamais imaginei que leria, mas não bastou. Sofri a culpa de não ser quem ele gostaria que eu fosse. Sofri a dor de ter velado sua liberdade.
No entanto, aprendi que o sofrimento é a matéria-prima da arte. Que é preciso morrer por dentro para se tornar vivo para o mundo. Me matei um pouco a cada dia, deixei minha ferida aberta, escancarada, sangrando sobre minha testa, sobre minha letra torta, sobre minha alma morta. Obrigado, Gogól, mas não bastou.
Descobri que minha alma não conhece a linguagem das palavras. Ela fala ao mundo através das formas, do espaço, dos olhos, da luz. Meu espírito respira as tintas do planeta e desvenda as cores da beleza que há naquilo que não pode ser dito. Agora quero olhar mais uma vez nos olhos do meu pai, quero pintar seu coração. Quero lhe dar o que tenho de melhor.
Lá está ele! Na varanda de sua casa, cochilando em sua cadeira de balanço. Minhas pernas tremem. Meus passos seguem tortos até o portão. Sinto como se meus pés fossem de chumbo e resto do meu corpo de papel. Minhas mãos estão suando. Vacilante, caminho até seu lado. Encosto minha mão em seu ombro. “Pai?”
Meu pai desperta e lentamente move seu rosto em minha direção. Seu bigode está branco como a neve. Com cuidado, retiro seus óculos e olho em seus olhos. Ele não me reconhece. Nem mais poderia. Meu pai está cego.
Meus joelhos dobram e me jogam contra o chão. Sinto saltar as veias de meu pescoço. Minha boca se abre, mas nenhum som sai de mim. Os dedos de minhas mãos se contraem como se fossem as garras de uma águia. Agonizo em silêncio aos pés de meu pai. Uma lágrima desce pelo meu rosto e cai vermelha no chão. Acabo de me lembrar o que sonhei esta noite.
Me arrasto para dentro da casa até conseguir um apoio para me levantar. Não é possível! Eu tinha certeza, os livros são como janelas. Quando abertos, a luz que os atravessa descortina sentimentos que sequer supúnhamos possuir. Depois de fechados, a pena para os que ousaram enfrentá-los é ter, como ferida, seus espíritos flutuando em um universo para sempre incompreensível.
Livros e janelas refletem um mundo parcial, um mundo visto apenas através de suas molduras. Bebemos das maravilhas desse mundo de falsas verdades até o dia em que somos impelidos a adentrá-lo. Nesse dia, pulamos as janelas e respiramos as cores da vida, vencemos as molduras dos livros e conhecemos um pouco mais sobre nós mesmos.
Sigo cambaleante até a biblioteca. A partir de amanhã não teremos mais flores nessa casa. Eis o fim! Eis o Nome da Rosa! Pego no bolso minha caixa de fósforos e inicio por aquele que revelou ao mundo a beleza daqueles que queimam no inferno. Adeus, Fiódor! Esses tantos poetas e pensadores te ajudarão a arder em chamas esta biblioteca. Não há mais com o que se preocupar.
O fogo queima na ribalta de uma dimensão lúdica. As palavras, agora mortas, voam no calor da fumaça. Elas estão livres! Não há mais significado... Me sinto tão bem... por que estou chorando?
Abro a janela. Pequenos pássaros voam sobre a casa. É hora de correr o mundo. Ele está vivo! A ferida em minha testa não sangra mais. Um último olhar, e entrego o retrato de meu pai ao fogo que arde sobre Dom Quixote.
Volto à janela e, de um pé, salto enfim para o meu mundo.
Durante oito anos, permaneci isolado em uma casa no campo para escrever um livro em homenagem a meu pai. Mas não consegui. Me obriguei a ler obras que jamais imaginei que leria, mas não bastou. Sofri a culpa de não ser quem ele gostaria que eu fosse. Sofri a dor de ter velado sua liberdade.
No entanto, aprendi que o sofrimento é a matéria-prima da arte. Que é preciso morrer por dentro para se tornar vivo para o mundo. Me matei um pouco a cada dia, deixei minha ferida aberta, escancarada, sangrando sobre minha testa, sobre minha letra torta, sobre minha alma morta. Obrigado, Gogól, mas não bastou.
Descobri que minha alma não conhece a linguagem das palavras. Ela fala ao mundo através das formas, do espaço, dos olhos, da luz. Meu espírito respira as tintas do planeta e desvenda as cores da beleza que há naquilo que não pode ser dito. Agora quero olhar mais uma vez nos olhos do meu pai, quero pintar seu coração. Quero lhe dar o que tenho de melhor.
Lá está ele! Na varanda de sua casa, cochilando em sua cadeira de balanço. Minhas pernas tremem. Meus passos seguem tortos até o portão. Sinto como se meus pés fossem de chumbo e resto do meu corpo de papel. Minhas mãos estão suando. Vacilante, caminho até seu lado. Encosto minha mão em seu ombro. “Pai?”
Meu pai desperta e lentamente move seu rosto em minha direção. Seu bigode está branco como a neve. Com cuidado, retiro seus óculos e olho em seus olhos. Ele não me reconhece. Nem mais poderia. Meu pai está cego.
Meus joelhos dobram e me jogam contra o chão. Sinto saltar as veias de meu pescoço. Minha boca se abre, mas nenhum som sai de mim. Os dedos de minhas mãos se contraem como se fossem as garras de uma águia. Agonizo em silêncio aos pés de meu pai. Uma lágrima desce pelo meu rosto e cai vermelha no chão. Acabo de me lembrar o que sonhei esta noite.
Me arrasto para dentro da casa até conseguir um apoio para me levantar. Não é possível! Eu tinha certeza, os livros são como janelas. Quando abertos, a luz que os atravessa descortina sentimentos que sequer supúnhamos possuir. Depois de fechados, a pena para os que ousaram enfrentá-los é ter, como ferida, seus espíritos flutuando em um universo para sempre incompreensível.
Livros e janelas refletem um mundo parcial, um mundo visto apenas através de suas molduras. Bebemos das maravilhas desse mundo de falsas verdades até o dia em que somos impelidos a adentrá-lo. Nesse dia, pulamos as janelas e respiramos as cores da vida, vencemos as molduras dos livros e conhecemos um pouco mais sobre nós mesmos.
Sigo cambaleante até a biblioteca. A partir de amanhã não teremos mais flores nessa casa. Eis o fim! Eis o Nome da Rosa! Pego no bolso minha caixa de fósforos e inicio por aquele que revelou ao mundo a beleza daqueles que queimam no inferno. Adeus, Fiódor! Esses tantos poetas e pensadores te ajudarão a arder em chamas esta biblioteca. Não há mais com o que se preocupar.
O fogo queima na ribalta de uma dimensão lúdica. As palavras, agora mortas, voam no calor da fumaça. Elas estão livres! Não há mais significado... Me sinto tão bem... por que estou chorando?
Abro a janela. Pequenos pássaros voam sobre a casa. É hora de correr o mundo. Ele está vivo! A ferida em minha testa não sangra mais. Um último olhar, e entrego o retrato de meu pai ao fogo que arde sobre Dom Quixote.
Volto à janela e, de um pé, salto enfim para o meu mundo.
segunda-feira, outubro 16, 2006
Bala de Prata
Um dia, outro dia, todos os dias. A vida passa lentamente quando todos são iguais.
Naquele, o sol recém rompera o horizonte quando Dorival acordou.
O clima estava quente e seco, sua garganta coçava enquanto o sol rasgava o ar empoeirado do quarto. Gordo e supersticioso, pé direito ao chão, procurou pensar em alguma coisa feliz. Era tarde. Só de pensar em ter um bom pensamento, já fazia de seu primeiro pensar um esforço vazio de estar bem. Sabia disso; mas que diferença fazia? Contemplou por alguns instantes o teto que se movia atrás da sombra do ventilador, desistiu. Preferiu ficar apenas deitado.
Quanto calor! Já respirava pela boca quando impôs o suplício dos seus 142 quilos sobre os joelhos na tentativa de alcançar um bloquinho de papel e um lápis sobre Meu Último Suspiro. Sentado, escreveu resquícios de sua recente memória fabulosa. Eram palavras soltas, desprovidas de sentido, não conseguia lembrar o que sonhara. “Grande escolha a minha”, pensava. “Vivo, antes quando durmo”.
Levantou-se lentamente nu, e a passos infantis chegou até o banheiro. Necessidade. Cara a cara contra o espelho, arregalou os olhos e deu-se de língua, de dentes, face de lado, a outra também. Barbeou-se a seco sem um corte sequer, puxou as bochechas, mindinho no ouvido, e vendo-se de soslaio, com olhos semicerrados, estava pronto para o seu último deleite.
Cuidadosamente, abriu uma mala posta ao lado da pia. Dentro dela, uma infindável coleção de pentes e escovas reluzia. Não se poderia dizer um verdadeiro arcabouço para vaidades capilares, eis que não lhe interessava shampoos, cremes ou espécies do gênero. “Somente instrumentos de desembaraço”, gostava de dizer.
Diante de muitas opções a dúvida tem vez, e com ela as incertezas quanto à escolha correta, o arrependimento do não feito e o império do “se”. Hoje isso não lhe importava. Sem receio, elegeu o que lhe parecia o melhor pente para afagar seus cabelos. Poucos, mas valiosos cabelos. Quanto prazer havia naquilo! Enquanto aquele fino pente, osso de baleia, rompia pioneiro as entranhas desgarradas dos leves fios, era amparado pela mão esquerda, que suavemente amaciava as pobres vítimas embrenhadas da noite de sono. Era como passear na tarde de um bosque, onde a delicadeza alça vôo na simplicidade da vida. Onde os horizontes brilham sob a luz do anoitecer. Pronto. Ao fim, a aurora se dava aos felizes.
Quanto calor! Sem banho, Dorival foi ao quarto e abriu o armário onde havia apenas um terno. Perplexo diante do solitário traje, dispensou um breve momento de contemplação antes de vesti-lo. Agora, de negro, faltava pouco.
Já na sala, abriu o baú e retirou Baltazar. Estava lá por não suportar o barulho das festas do vizinho. O velho loro ficava ensandecido. Quando dormia, era preciso cobrir-lhe a cabeça com um capuz, como se fosse um carrasco, e quando vivo, levava na pata esquerda uma pequena corrente, como se condenado fosse. Não que pudesse atacar uma visita, que nunca vinha. O próprio dono é quem poderia ser vítima de seus ataques de histeria.
Baltazar tinha seu poleiro posto logo acima de Julio César, um belo Beta vermelho, na verdade fêmea, que vivia em uma panela. Essa vizinhança proporcionava a Julio, além da ração para peixes, toda a sujeira despejada pelo papagaio. Gostava daquilo.
Quase oito, era hora de sentar-se à poltrona e esperar. A janela estava aberta conforme o combinado. Nada podia dar errado. Apenas uma bala, uma única bala e seria o fim. Do prédio da frente viria o fogo de prata que poria fim a essa errante eternidade. “Brilhante e prateado, ele me libertará”, sonhava. “Nada mais humano do que contratar alguém para matar a si próprio. Como dar cabo de si, quando os mistérios da vida insistem em atormentar a racionalidade? Como pontuar a própria existência sem correr os riscos da verossimilhança da fé? E se for verdade? Me submeterei à queda no abismo sem fim? Não, nunca! Melhor que outrem faça por mim...”
Enquanto esperava, Dorival ouviu gargalhadas femininas vindas da escada do prédio que, de tão altas e forçadas, o fizeram concluir se tratar de putas bêbadas. Os gritos melódicos vinham se aproximando de seu andar acompanhados de uma percussão de garrafas rolantes que, ao fim de três ou quatro degraus, estouravam secas na parede. “Feliz ignorância! Feliz mediocridade!”, lamentava. Preferiu permanecer sentado quando a campainha tocou. Mais risos escandalosos atrás da porta, toda expressão de alegria, toda essa injustificável alegria doía-lhe no peito. Não tocaram mais, foram embora.
Quanto calor! Dorival olhou para o relógio, eram oito horas. Estava pronto. Ao levantar a cabeça, ao largo, viu seu pontual algoz. “Lá está ele!”, pensava com um sorriso perverso estampado no rosto.
Do outro lado da rua, no terraço, um homem mantinha-se em posição de tiro. Estava deitado, imóvel. Aguardava o sopro da morte, assim como um artista em busca de inspiração. Como era lindo devolver ao Todo a essência limitada pelo corpo, dar respostas às perguntas mais sublimes, romper as barreiras do incognoscível.
Com os olhos fixos na águia, Dorival lembrou-se do sonho que teve. Era tarde. De súbito, um caloroso vento de balançar copas teve vez. Com toda força, invadiu a sala revirando livros, derrubando estantes, quebrando vidros. Apenas o peixe repousava tranqüilo no silêncio da água. Grossas e escuras nuvens cobriram o céu em um instante mágico. O som do fogo de ferro anunciou o fim. Sua gravata e seus cabelos sangravam. Fim das cores, fim da vida.
Não havia mais calor. Ao fundo, lentamente, o pássaro não resistia. Estava calmo, apesar da asa cortada pela prata. Não havia mais dor, só o escuro. Condenado, caiu pendurado pela garra canhota. O que garantiu a Julio comida por um longo tempo.
Naquele, o sol recém rompera o horizonte quando Dorival acordou.
O clima estava quente e seco, sua garganta coçava enquanto o sol rasgava o ar empoeirado do quarto. Gordo e supersticioso, pé direito ao chão, procurou pensar em alguma coisa feliz. Era tarde. Só de pensar em ter um bom pensamento, já fazia de seu primeiro pensar um esforço vazio de estar bem. Sabia disso; mas que diferença fazia? Contemplou por alguns instantes o teto que se movia atrás da sombra do ventilador, desistiu. Preferiu ficar apenas deitado.
Quanto calor! Já respirava pela boca quando impôs o suplício dos seus 142 quilos sobre os joelhos na tentativa de alcançar um bloquinho de papel e um lápis sobre Meu Último Suspiro. Sentado, escreveu resquícios de sua recente memória fabulosa. Eram palavras soltas, desprovidas de sentido, não conseguia lembrar o que sonhara. “Grande escolha a minha”, pensava. “Vivo, antes quando durmo”.
Levantou-se lentamente nu, e a passos infantis chegou até o banheiro. Necessidade. Cara a cara contra o espelho, arregalou os olhos e deu-se de língua, de dentes, face de lado, a outra também. Barbeou-se a seco sem um corte sequer, puxou as bochechas, mindinho no ouvido, e vendo-se de soslaio, com olhos semicerrados, estava pronto para o seu último deleite.
Cuidadosamente, abriu uma mala posta ao lado da pia. Dentro dela, uma infindável coleção de pentes e escovas reluzia. Não se poderia dizer um verdadeiro arcabouço para vaidades capilares, eis que não lhe interessava shampoos, cremes ou espécies do gênero. “Somente instrumentos de desembaraço”, gostava de dizer.
Diante de muitas opções a dúvida tem vez, e com ela as incertezas quanto à escolha correta, o arrependimento do não feito e o império do “se”. Hoje isso não lhe importava. Sem receio, elegeu o que lhe parecia o melhor pente para afagar seus cabelos. Poucos, mas valiosos cabelos. Quanto prazer havia naquilo! Enquanto aquele fino pente, osso de baleia, rompia pioneiro as entranhas desgarradas dos leves fios, era amparado pela mão esquerda, que suavemente amaciava as pobres vítimas embrenhadas da noite de sono. Era como passear na tarde de um bosque, onde a delicadeza alça vôo na simplicidade da vida. Onde os horizontes brilham sob a luz do anoitecer. Pronto. Ao fim, a aurora se dava aos felizes.
Quanto calor! Sem banho, Dorival foi ao quarto e abriu o armário onde havia apenas um terno. Perplexo diante do solitário traje, dispensou um breve momento de contemplação antes de vesti-lo. Agora, de negro, faltava pouco.
Já na sala, abriu o baú e retirou Baltazar. Estava lá por não suportar o barulho das festas do vizinho. O velho loro ficava ensandecido. Quando dormia, era preciso cobrir-lhe a cabeça com um capuz, como se fosse um carrasco, e quando vivo, levava na pata esquerda uma pequena corrente, como se condenado fosse. Não que pudesse atacar uma visita, que nunca vinha. O próprio dono é quem poderia ser vítima de seus ataques de histeria.
Baltazar tinha seu poleiro posto logo acima de Julio César, um belo Beta vermelho, na verdade fêmea, que vivia em uma panela. Essa vizinhança proporcionava a Julio, além da ração para peixes, toda a sujeira despejada pelo papagaio. Gostava daquilo.
Quase oito, era hora de sentar-se à poltrona e esperar. A janela estava aberta conforme o combinado. Nada podia dar errado. Apenas uma bala, uma única bala e seria o fim. Do prédio da frente viria o fogo de prata que poria fim a essa errante eternidade. “Brilhante e prateado, ele me libertará”, sonhava. “Nada mais humano do que contratar alguém para matar a si próprio. Como dar cabo de si, quando os mistérios da vida insistem em atormentar a racionalidade? Como pontuar a própria existência sem correr os riscos da verossimilhança da fé? E se for verdade? Me submeterei à queda no abismo sem fim? Não, nunca! Melhor que outrem faça por mim...”
Enquanto esperava, Dorival ouviu gargalhadas femininas vindas da escada do prédio que, de tão altas e forçadas, o fizeram concluir se tratar de putas bêbadas. Os gritos melódicos vinham se aproximando de seu andar acompanhados de uma percussão de garrafas rolantes que, ao fim de três ou quatro degraus, estouravam secas na parede. “Feliz ignorância! Feliz mediocridade!”, lamentava. Preferiu permanecer sentado quando a campainha tocou. Mais risos escandalosos atrás da porta, toda expressão de alegria, toda essa injustificável alegria doía-lhe no peito. Não tocaram mais, foram embora.
Quanto calor! Dorival olhou para o relógio, eram oito horas. Estava pronto. Ao levantar a cabeça, ao largo, viu seu pontual algoz. “Lá está ele!”, pensava com um sorriso perverso estampado no rosto.
Do outro lado da rua, no terraço, um homem mantinha-se em posição de tiro. Estava deitado, imóvel. Aguardava o sopro da morte, assim como um artista em busca de inspiração. Como era lindo devolver ao Todo a essência limitada pelo corpo, dar respostas às perguntas mais sublimes, romper as barreiras do incognoscível.
Com os olhos fixos na águia, Dorival lembrou-se do sonho que teve. Era tarde. De súbito, um caloroso vento de balançar copas teve vez. Com toda força, invadiu a sala revirando livros, derrubando estantes, quebrando vidros. Apenas o peixe repousava tranqüilo no silêncio da água. Grossas e escuras nuvens cobriram o céu em um instante mágico. O som do fogo de ferro anunciou o fim. Sua gravata e seus cabelos sangravam. Fim das cores, fim da vida.
Não havia mais calor. Ao fundo, lentamente, o pássaro não resistia. Estava calmo, apesar da asa cortada pela prata. Não havia mais dor, só o escuro. Condenado, caiu pendurado pela garra canhota. O que garantiu a Julio comida por um longo tempo.
O Ritual
Quando derrubei o galho, temi ter meus ossos frios sob a raiz de uma planta qualquer. Por sorte, o barulho não ecoou, e os tambores reiniciaram o ritual. “Não me viram, não me viram”, respirei aliviado. “Como é bom não ser notado quando se é tão diferente”, pensei. “Mas por que, ao mesmo tempo, sinto esse desejo de ser descoberto?”. Estranho desejo esse que habita no coração de quem se esconde. “Estou aqui”, diziam meus olhos, “estou aqui”. Aquilo não passou de um pobre descuido do coração que pulsa mergulhado na beleza, enquanto o espírito, em apuros, plana sobre cabeças.
Alcançar a copa daquela árvore não exigiu sabedoria, tanto quanto sangue dado pelas minhas mãos para colorir suas folhas. Aos insetos, dei apenas o quente suor que agora esfria meu corpo. Ao céu, nada; o tempo se ocupou de lhe dar o sol, e depois, novamente, a lua.
Traguei a luz que penetrava tranqüila pelo ângulo perfeito apresentado a mim. Apenas um teste entre as claras sombras formadas por pequeninas folhas translúcidas. Que efeito fabuloso! Não sei dizer se por conta de algum fruto silvestre ou pela longa lente que trazia comigo, o fato era que minha visão vencia os ramos e descortinava o vasto horizonte me permitindo ver além. Estava tudo pronto para a foto ideal.
Ao redor da fogueira, círculos em sucessão, formados por centenas de corpos borrados de azul e vermelho, giravam alternadamente. O menor e mais próximo do fogo seguia para a esquerda, o seguinte para a direita, e assim por diante, no ritmo dos tambores, até a mais larga e distante ciranda. A engrenagem humana dava ao campo luz e movimento. Os raios do fogo, entre aquela gente até então calada, faziam curvas antes de penetrar pela lente da minha câmera.
Suavemente, vozes femininas preencheram o ar com música. A vibração celestial, sustentada por uma única nota, parecia invocar espíritos da floresta. Eu estava entregue àquela fantasia. Meu ceticismo acadêmico caiu por terra perante a leveza daquele cântico. Ali alcancei a serenidade para perceber que o sentido da vida está em senti-la. Que a todo o momento, em algum lugar do mundo, um pôr-do-sol acontece.
Não conseguia mais fotografar. Tive medo de que tudo aquilo fosse verdade. Medo daqueles corpos dançantes. Medo de não estar só, aqui, no topo dessa árvore, nesse mundo. Medo da minha própria hipocrisia em apelar por uma intervenção divina quando o galho caiu.
De repente, o medo deu lugar ao encanto. No céu, acima dos círculos, aves se posicionavam sobre as cabeças. Milhafres e andorinhas, tucanos e gaviões, todos e cada um, giravam no mesmo pé da dança. Cada pessoa estava representada no céu por um pássaro. Acima de cada um, um par de asas. Não pude registrar. Nessa hora já estava atordoado, e minha máquina, na peleja, jazia em cima de um formigueiro.
As mulheres seguiam cantando acompanhadas pelo som das aves. Céu e terra giravam juntos na dança da natureza. Aos poucos, gritos nasciam dispersos berrando alegria. Quando um grave sobressaiu latente, os tambores cessaram. Mulheres e aves silenciaram. Todos, imersos na poeira, pararam de rodar, e ergueram os braços oferecendo dedos, como se quisessem dar um porto aos pássaros.
Por um segundo, um segundo apenas, eles também pararam. Saindo do transe, voltaram a bater asas lentamente. E então, liderados pela águia do círculo menor, que voou certeira bico adentro da fogueira, todos os pássaros desceram formando uma espiral. Da árvore, era um gigante cone com vértice no centro dos círculos humanos. O fogo subiu alimentado pelos pássaros. Subiu tanto, até engolir por completo o cone voador.
Alcançar a copa daquela árvore não exigiu sabedoria, tanto quanto sangue dado pelas minhas mãos para colorir suas folhas. Aos insetos, dei apenas o quente suor que agora esfria meu corpo. Ao céu, nada; o tempo se ocupou de lhe dar o sol, e depois, novamente, a lua.
Traguei a luz que penetrava tranqüila pelo ângulo perfeito apresentado a mim. Apenas um teste entre as claras sombras formadas por pequeninas folhas translúcidas. Que efeito fabuloso! Não sei dizer se por conta de algum fruto silvestre ou pela longa lente que trazia comigo, o fato era que minha visão vencia os ramos e descortinava o vasto horizonte me permitindo ver além. Estava tudo pronto para a foto ideal.
Ao redor da fogueira, círculos em sucessão, formados por centenas de corpos borrados de azul e vermelho, giravam alternadamente. O menor e mais próximo do fogo seguia para a esquerda, o seguinte para a direita, e assim por diante, no ritmo dos tambores, até a mais larga e distante ciranda. A engrenagem humana dava ao campo luz e movimento. Os raios do fogo, entre aquela gente até então calada, faziam curvas antes de penetrar pela lente da minha câmera.
Suavemente, vozes femininas preencheram o ar com música. A vibração celestial, sustentada por uma única nota, parecia invocar espíritos da floresta. Eu estava entregue àquela fantasia. Meu ceticismo acadêmico caiu por terra perante a leveza daquele cântico. Ali alcancei a serenidade para perceber que o sentido da vida está em senti-la. Que a todo o momento, em algum lugar do mundo, um pôr-do-sol acontece.
Não conseguia mais fotografar. Tive medo de que tudo aquilo fosse verdade. Medo daqueles corpos dançantes. Medo de não estar só, aqui, no topo dessa árvore, nesse mundo. Medo da minha própria hipocrisia em apelar por uma intervenção divina quando o galho caiu.
De repente, o medo deu lugar ao encanto. No céu, acima dos círculos, aves se posicionavam sobre as cabeças. Milhafres e andorinhas, tucanos e gaviões, todos e cada um, giravam no mesmo pé da dança. Cada pessoa estava representada no céu por um pássaro. Acima de cada um, um par de asas. Não pude registrar. Nessa hora já estava atordoado, e minha máquina, na peleja, jazia em cima de um formigueiro.
As mulheres seguiam cantando acompanhadas pelo som das aves. Céu e terra giravam juntos na dança da natureza. Aos poucos, gritos nasciam dispersos berrando alegria. Quando um grave sobressaiu latente, os tambores cessaram. Mulheres e aves silenciaram. Todos, imersos na poeira, pararam de rodar, e ergueram os braços oferecendo dedos, como se quisessem dar um porto aos pássaros.
Por um segundo, um segundo apenas, eles também pararam. Saindo do transe, voltaram a bater asas lentamente. E então, liderados pela águia do círculo menor, que voou certeira bico adentro da fogueira, todos os pássaros desceram formando uma espiral. Da árvore, era um gigante cone com vértice no centro dos círculos humanos. O fogo subiu alimentado pelos pássaros. Subiu tanto, até engolir por completo o cone voador.
Um Conto Fantástico (3ª parte) - Calangos Voadores
Em um pequeno lago, o tempo escoava tranqüilo no silêncio da pescaria. Sozinho no barco, entre a água, o ar e minha longa barba branca, mergulhei em lembranças e decidi chorar. Foi quando então ouvi música.
Levantei meus olhos lentamente e vi uma grande nuvem negra se aproximando. Uma nuvem de calangos voadores! Todos em fuga, uníssonos, corujas à cola, procuravam abrigo. Naquele instante presenciei um milagre, a imagem mais espetacular de toda minha vida. Num movimento harmônico, como que ensaiado, os pequenos lagartos se organizaram em forma de rio. Um rio voador que corria em minha direção.
Voavam a mais ou menos cinco metros de altura quando atingiram a linha vertical imaginária que estabelece o início do lago onde eu estava. Na fração de um suspiro, subiram e desceram rapidamente e, num movimento circular, de ponta ao chão, mergulharam. Todos, negros e juntos, numa fabulosa cascata de répteis.
O barco dançava ao som daquela imagem fantástica. Os diminutos crocodilos afundavam enquanto outros eram repelidos pela água, assim como uma cachoeira de verdade. Em pouco tempo, todo o lago fora banhado por esses seres. Um lago de jacarés voadores.
Algumas corujas que vinham em carreira conseguiram fisgar os calangos menos astutos, mas a maioria escapou ilesa. A impressão que eu tinha era que uma parede de vento bloqueava a passagem delas, que não atacavam a cascata, o conjunto. Elas apenas beliscavam aqueles que, não tendo a sorte dos demais, desfaleciam cansados à beira do lago.
Quando a música teve fim, os urubus chegaram e, só depois, morto no silêncio, pude voar novamente.
Levantei meus olhos lentamente e vi uma grande nuvem negra se aproximando. Uma nuvem de calangos voadores! Todos em fuga, uníssonos, corujas à cola, procuravam abrigo. Naquele instante presenciei um milagre, a imagem mais espetacular de toda minha vida. Num movimento harmônico, como que ensaiado, os pequenos lagartos se organizaram em forma de rio. Um rio voador que corria em minha direção.
Voavam a mais ou menos cinco metros de altura quando atingiram a linha vertical imaginária que estabelece o início do lago onde eu estava. Na fração de um suspiro, subiram e desceram rapidamente e, num movimento circular, de ponta ao chão, mergulharam. Todos, negros e juntos, numa fabulosa cascata de répteis.
O barco dançava ao som daquela imagem fantástica. Os diminutos crocodilos afundavam enquanto outros eram repelidos pela água, assim como uma cachoeira de verdade. Em pouco tempo, todo o lago fora banhado por esses seres. Um lago de jacarés voadores.
Algumas corujas que vinham em carreira conseguiram fisgar os calangos menos astutos, mas a maioria escapou ilesa. A impressão que eu tinha era que uma parede de vento bloqueava a passagem delas, que não atacavam a cascata, o conjunto. Elas apenas beliscavam aqueles que, não tendo a sorte dos demais, desfaleciam cansados à beira do lago.
Quando a música teve fim, os urubus chegaram e, só depois, morto no silêncio, pude voar novamente.
segunda-feira, outubro 09, 2006
Um Conto Fantástico (2ª parte) - Preso pelo Ser
Ainda que sem penas, como todas, minha infância onírica me permitiu voar. Com garras em meus ombros fui tão alto que minhas retinas apreenderam movimentos no ar. Não havia pipa que dançasse com maior leveza, não havia nuvem com tamanha grandeza. Éramos tudo e apenas astros negros flutuando no céu. Ou quem sabe, breves estrelas sem luz.
Os cães me encontraram em uma praça, ao lado da carcaça de um cavalo morto. Eu estava só, os outros voaram a tempo de escapar dos dentes. Ainda com a boca em sangue, senti o cheiro das outras, que salivavam e arfavam por me cercar indefeso.
Quando entregue, da matilha fui alçado por duas mãos de lavoura. Eram mãos fortes, com dedos compridos, cobertos por uma pele grossa e velha. O dono delas trazia, no topo de seus quase dois metros, grandes olhos verdes sobre um sugestivo nariz aquilino. Seu rosto magro e pálido realçava o sofrimento de uma alma vazia. Não havia esperanças para ele.
Aquele ser esguio, com a pele gravada pelo tempo, ao me erguer, ofereceu um olhar vago, sem qualquer sentimento. Quem sabe, apenas uma espécie de curiosidade desinteressada. Parecia que seu olhar queria focar além, atravessar meu corpo e descobrir o que havia atrás de mim. Como não tinha asas para fugir, fui capturado.
De dentro da caixa de madeira, pelas frestas, vi nuvens dançando por conta do balanço da carroça. Fiquei assim enquanto puxado pelos bodes no caminho de terra. Não atentei para o barulho das rodas até o som do rio se esvair na distância. Subimos a montanha. Descemos do outro lado e encontramos o rio novamente. Paramos. Os cachorros também. A criatura dos olhos mortos desceu da carroça, amarrou os bodes em uma árvore e me tirou da caixa.
Preso em suas costas curvadas pelo tempo, segui por uma estreita trilha. As grandes árvores e o canto distante de algumas corujas davam àquela densa floresta um tom lúgubre. Os vira-latas não ousavam entrar ali. Mesmo toda a beleza dos poucos raios de sol que penetravam entre os galhos das árvores não era capaz de afastar de mim o pavor daquele momento.
Após alguns minutos de caminhada, chegamos a um pequeno casebre. Por fora, uma velha cabana abandonada. Por dentro, um universo às avessas. Um lugar que me fez descobrir a mim mesmo. Saber quem eu sou. Deixar de ser, voltar a ser. Foi como um sonho que não se deseja, um desejo de não mais sonhar. Ali pude viver tudo que é possível viver consigo mesmo. Não havia limites, não havia alternativa. Sem valores pré-concebidos, sem princípios morais, sem pudor, sem amor.
Vivi ali sozinho. Comigo mesmo, apenas eu.
Não havia nada naquele lugar além de uma gaiola presa ao teto. Na verdade, estava presa a uma corrente que passava por uma roldana fixa no teto, tendo fim em uma alavanca posta no chão do casebre.
Quando chegamos, pulei das costas do velho que, como da primeira vez em que nos vimos, deu-me um olhar vazio. Contudo, dessa vez seus olhos não pareciam perscrutar meu corpo. Eles simplesmente olhavam para mim. Todo aquele encanto verde... Como duvidar daquela doçura?
Não há nada mais belo e doloroso do que o instante em que dois seres se olham nos olhos. Aquela foi a última vez. De certa forma, eu já sabia. Por isso, nos olhamos profundamente e, mesmo assim, não posso afirmar com certeza se naquele rosto vi alegria ou dor.
Permaneci paralisado quando o velho virou-se em direção à alavanca que prendia a corrente ao chão. Num firme movimento, ele a destravou e a gaiola despencou do teto provocando um estrondo que ecoou vale adentro. Lentamente, o ser esguio caminhou até a jaula e com suas pesadas mãos abriu o cadeado.
Vivi ali por quatro longos anos. A gaiola me permitia ficar de joelhos, mas na maior parte do tempo permaneci sentado, balançando as pernas ao ar. O pensamento é tudo que precisamos para sermos felizes, ou tristes. Nada mais.
O velho sabia que eu não morreria ali. Durante três dias na semana o rio transbordava. Suas águas alagavam o casebre até tocar os dedos dos meus pés. Junto com o rio, uma quantidade enorme de insetos aparecia e, com eles, calangos eram atraídos.
Hoje choro a lembrança daqueles anos. Duvido de mim mesmo, penso se realmente sou o que vivi. Não sei. Somente sei que os pés no chão não pagam o sopro do vento contra o rosto. Mesmo o chão das grades do desgosto não é capaz de apagar o que somos. Ou sonhamos que somos.
Os cães me encontraram em uma praça, ao lado da carcaça de um cavalo morto. Eu estava só, os outros voaram a tempo de escapar dos dentes. Ainda com a boca em sangue, senti o cheiro das outras, que salivavam e arfavam por me cercar indefeso.
Quando entregue, da matilha fui alçado por duas mãos de lavoura. Eram mãos fortes, com dedos compridos, cobertos por uma pele grossa e velha. O dono delas trazia, no topo de seus quase dois metros, grandes olhos verdes sobre um sugestivo nariz aquilino. Seu rosto magro e pálido realçava o sofrimento de uma alma vazia. Não havia esperanças para ele.
Aquele ser esguio, com a pele gravada pelo tempo, ao me erguer, ofereceu um olhar vago, sem qualquer sentimento. Quem sabe, apenas uma espécie de curiosidade desinteressada. Parecia que seu olhar queria focar além, atravessar meu corpo e descobrir o que havia atrás de mim. Como não tinha asas para fugir, fui capturado.
De dentro da caixa de madeira, pelas frestas, vi nuvens dançando por conta do balanço da carroça. Fiquei assim enquanto puxado pelos bodes no caminho de terra. Não atentei para o barulho das rodas até o som do rio se esvair na distância. Subimos a montanha. Descemos do outro lado e encontramos o rio novamente. Paramos. Os cachorros também. A criatura dos olhos mortos desceu da carroça, amarrou os bodes em uma árvore e me tirou da caixa.
Preso em suas costas curvadas pelo tempo, segui por uma estreita trilha. As grandes árvores e o canto distante de algumas corujas davam àquela densa floresta um tom lúgubre. Os vira-latas não ousavam entrar ali. Mesmo toda a beleza dos poucos raios de sol que penetravam entre os galhos das árvores não era capaz de afastar de mim o pavor daquele momento.
Após alguns minutos de caminhada, chegamos a um pequeno casebre. Por fora, uma velha cabana abandonada. Por dentro, um universo às avessas. Um lugar que me fez descobrir a mim mesmo. Saber quem eu sou. Deixar de ser, voltar a ser. Foi como um sonho que não se deseja, um desejo de não mais sonhar. Ali pude viver tudo que é possível viver consigo mesmo. Não havia limites, não havia alternativa. Sem valores pré-concebidos, sem princípios morais, sem pudor, sem amor.
Vivi ali sozinho. Comigo mesmo, apenas eu.
Não havia nada naquele lugar além de uma gaiola presa ao teto. Na verdade, estava presa a uma corrente que passava por uma roldana fixa no teto, tendo fim em uma alavanca posta no chão do casebre.
Quando chegamos, pulei das costas do velho que, como da primeira vez em que nos vimos, deu-me um olhar vazio. Contudo, dessa vez seus olhos não pareciam perscrutar meu corpo. Eles simplesmente olhavam para mim. Todo aquele encanto verde... Como duvidar daquela doçura?
Não há nada mais belo e doloroso do que o instante em que dois seres se olham nos olhos. Aquela foi a última vez. De certa forma, eu já sabia. Por isso, nos olhamos profundamente e, mesmo assim, não posso afirmar com certeza se naquele rosto vi alegria ou dor.
Permaneci paralisado quando o velho virou-se em direção à alavanca que prendia a corrente ao chão. Num firme movimento, ele a destravou e a gaiola despencou do teto provocando um estrondo que ecoou vale adentro. Lentamente, o ser esguio caminhou até a jaula e com suas pesadas mãos abriu o cadeado.
Vivi ali por quatro longos anos. A gaiola me permitia ficar de joelhos, mas na maior parte do tempo permaneci sentado, balançando as pernas ao ar. O pensamento é tudo que precisamos para sermos felizes, ou tristes. Nada mais.
O velho sabia que eu não morreria ali. Durante três dias na semana o rio transbordava. Suas águas alagavam o casebre até tocar os dedos dos meus pés. Junto com o rio, uma quantidade enorme de insetos aparecia e, com eles, calangos eram atraídos.
Hoje choro a lembrança daqueles anos. Duvido de mim mesmo, penso se realmente sou o que vivi. Não sei. Somente sei que os pés no chão não pagam o sopro do vento contra o rosto. Mesmo o chão das grades do desgosto não é capaz de apagar o que somos. Ou sonhamos que somos.
sexta-feira, outubro 06, 2006
Um Conto Fantástico (1ª parte) - Língua de Urubu
Nasci fiapo de gente no dia em que minha mãe morreu. A pobrezinha, subindo ao céu, me segurou tão forte que quase fui junto, mas meu pai me teve pelas pernas. O velho, repleto de sabedoria, me abençoou dizendo que eu voaria alto pela vida. Estava escrito que assim seria, eis que a missão divina de minha mãe ali se cumpria. A de me trazer ao mundo.
A bruxa da vila, parteira, não pensava assim. Era mulher velha, cujos olhos fatigados já viram muita coisa nessa vida. Ela sabia que os bons espíritos pediam licença para nascer, não abriam portas aos pontapés. Os filhos que matam quem lhes deu a vida devem expiar pelo sangue. E o povo lhes trará a redenção, assim o demônio sairá expulso dessa terra.
Em pouco tempo, o povo cercou o casebre em que nós estávamos. Não havia como sair dali. Os gritos que viam lá de fora anunciavam a carnificina. O tilintar das foices iluminava a noite do massacre. As ordens de redenção brotavam daquelas bocas sedentas por sangue. Minha pele era a manta que cingia o espírito maligno. Eu deveria morrer.
Meu velho pai não suportou a dor. Em um gesto do mais puro amor, desembainhou seu punhal e o cravou na testa da feiticeira. Batizou-me com suas lágrimas, estendeu seus braços à roda dos infantes, me fez girar, e morreu. Na verdade, a roda era o próprio útero de minha mãe. Meu pai me enterrou de volta em sua barriga. Ali eu estava seguro.
Nesta vida sem fé, guardo saudades daquele tempo ido. Tempo em que a realidade não estava somente naquilo que víamos. Tempo em que a poesia dava rumo à sabedoria.
Naquela mesma noite, o povo em procissão entregou o corpo de minha mãe ao rio. Suas correntezas nos levaram noite adentro, até encontrarmos a aurora em uma pequena praia ribeirinha.
Posso dizer que nasci duas vezes na mesma vida. Pelas mãos de uma bruxa, e entre as asas dos abutres. Sim, devo o sol àquelas aves.
Os pássaros que vivem da morte - pois ela não trai - avançaram famintos sobre a barriga de minha mãe. Um profundo corte e todas as tripas foram suavemente sugadas, cada víscera saboreada com tamanho deleite; cada pegada, que antes quase arrastada pela desconfiança do tamanho banquete, agora se enchia de sangue. Como um artista retira da pedra sua escultura, aquelas aves me fizeram nascer.
Os urubus foram os primeiros pássaros que vi, e os únicos que me beijaram. Lembro-me até hoje daquelas tantas línguas sujas me limpando, da áspera frieza dos bicos negros, do brilho seco daqueles olhos. Eu era azedo, e o doce para aquelas bocas é salgado para tantas outras. Posso sentir o gosto daquele dia. Nós, iguais, tínhamos olhos e vida, além de banguelas. Agora, confesso que, por ter em punho essa pena preta, somos ainda mais. Somos mais iguais.
A bruxa da vila, parteira, não pensava assim. Era mulher velha, cujos olhos fatigados já viram muita coisa nessa vida. Ela sabia que os bons espíritos pediam licença para nascer, não abriam portas aos pontapés. Os filhos que matam quem lhes deu a vida devem expiar pelo sangue. E o povo lhes trará a redenção, assim o demônio sairá expulso dessa terra.
Em pouco tempo, o povo cercou o casebre em que nós estávamos. Não havia como sair dali. Os gritos que viam lá de fora anunciavam a carnificina. O tilintar das foices iluminava a noite do massacre. As ordens de redenção brotavam daquelas bocas sedentas por sangue. Minha pele era a manta que cingia o espírito maligno. Eu deveria morrer.
Meu velho pai não suportou a dor. Em um gesto do mais puro amor, desembainhou seu punhal e o cravou na testa da feiticeira. Batizou-me com suas lágrimas, estendeu seus braços à roda dos infantes, me fez girar, e morreu. Na verdade, a roda era o próprio útero de minha mãe. Meu pai me enterrou de volta em sua barriga. Ali eu estava seguro.
Nesta vida sem fé, guardo saudades daquele tempo ido. Tempo em que a realidade não estava somente naquilo que víamos. Tempo em que a poesia dava rumo à sabedoria.
Naquela mesma noite, o povo em procissão entregou o corpo de minha mãe ao rio. Suas correntezas nos levaram noite adentro, até encontrarmos a aurora em uma pequena praia ribeirinha.
Posso dizer que nasci duas vezes na mesma vida. Pelas mãos de uma bruxa, e entre as asas dos abutres. Sim, devo o sol àquelas aves.
Os pássaros que vivem da morte - pois ela não trai - avançaram famintos sobre a barriga de minha mãe. Um profundo corte e todas as tripas foram suavemente sugadas, cada víscera saboreada com tamanho deleite; cada pegada, que antes quase arrastada pela desconfiança do tamanho banquete, agora se enchia de sangue. Como um artista retira da pedra sua escultura, aquelas aves me fizeram nascer.
Os urubus foram os primeiros pássaros que vi, e os únicos que me beijaram. Lembro-me até hoje daquelas tantas línguas sujas me limpando, da áspera frieza dos bicos negros, do brilho seco daqueles olhos. Eu era azedo, e o doce para aquelas bocas é salgado para tantas outras. Posso sentir o gosto daquele dia. Nós, iguais, tínhamos olhos e vida, além de banguelas. Agora, confesso que, por ter em punho essa pena preta, somos ainda mais. Somos mais iguais.