segunda-feira, outubro 09, 2006

Um Conto Fantástico (2ª parte) - Preso pelo Ser

Ainda que sem penas, como todas, minha infância onírica me permitiu voar. Com garras em meus ombros fui tão alto que minhas retinas apreenderam movimentos no ar. Não havia pipa que dançasse com maior leveza, não havia nuvem com tamanha grandeza. Éramos tudo e apenas astros negros flutuando no céu. Ou quem sabe, breves estrelas sem luz.

Os cães me encontraram em uma praça, ao lado da carcaça de um cavalo morto. Eu estava só, os outros voaram a tempo de escapar dos dentes. Ainda com a boca em sangue, senti o cheiro das outras, que salivavam e arfavam por me cercar indefeso.

Quando entregue, da matilha fui alçado por duas mãos de lavoura. Eram mãos fortes, com dedos compridos, cobertos por uma pele grossa e velha. O dono delas trazia, no topo de seus quase dois metros, grandes olhos verdes sobre um sugestivo nariz aquilino. Seu rosto magro e pálido realçava o sofrimento de uma alma vazia. Não havia esperanças para ele.

Aquele ser esguio, com a pele gravada pelo tempo, ao me erguer, ofereceu um olhar vago, sem qualquer sentimento. Quem sabe, apenas uma espécie de curiosidade desinteressada. Parecia que seu olhar queria focar além, atravessar meu corpo e descobrir o que havia atrás de mim. Como não tinha asas para fugir, fui capturado.

De dentro da caixa de madeira, pelas frestas, vi nuvens dançando por conta do balanço da carroça. Fiquei assim enquanto puxado pelos bodes no caminho de terra. Não atentei para o barulho das rodas até o som do rio se esvair na distância. Subimos a montanha. Descemos do outro lado e encontramos o rio novamente. Paramos. Os cachorros também. A criatura dos olhos mortos desceu da carroça, amarrou os bodes em uma árvore e me tirou da caixa.

Preso em suas costas curvadas pelo tempo, segui por uma estreita trilha. As grandes árvores e o canto distante de algumas corujas davam àquela densa floresta um tom lúgubre. Os vira-latas não ousavam entrar ali. Mesmo toda a beleza dos poucos raios de sol que penetravam entre os galhos das árvores não era capaz de afastar de mim o pavor daquele momento.

Após alguns minutos de caminhada, chegamos a um pequeno casebre. Por fora, uma velha cabana abandonada. Por dentro, um universo às avessas. Um lugar que me fez descobrir a mim mesmo. Saber quem eu sou. Deixar de ser, voltar a ser. Foi como um sonho que não se deseja, um desejo de não mais sonhar. Ali pude viver tudo que é possível viver consigo mesmo. Não havia limites, não havia alternativa. Sem valores pré-concebidos, sem princípios morais, sem pudor, sem amor.
Vivi ali sozinho. Comigo mesmo, apenas eu.

Não havia nada naquele lugar além de uma gaiola presa ao teto. Na verdade, estava presa a uma corrente que passava por uma roldana fixa no teto, tendo fim em uma alavanca posta no chão do casebre.

Quando chegamos, pulei das costas do velho que, como da primeira vez em que nos vimos, deu-me um olhar vazio. Contudo, dessa vez seus olhos não pareciam perscrutar meu corpo. Eles simplesmente olhavam para mim. Todo aquele encanto verde... Como duvidar daquela doçura?


Não há nada mais belo e doloroso do que o instante em que dois seres se olham nos olhos. Aquela foi a última vez. De certa forma, eu já sabia. Por isso, nos olhamos profundamente e, mesmo assim, não posso afirmar com certeza se naquele rosto vi alegria ou dor.

Permaneci paralisado quando o velho virou-se em direção à alavanca que prendia a corrente ao chão. Num firme movimento, ele a destravou e a gaiola despencou do teto provocando um estrondo que ecoou vale adentro. Lentamente, o ser esguio caminhou até a jaula e com suas pesadas mãos abriu o cadeado.

Vivi ali por quatro longos anos. A gaiola me permitia ficar de joelhos, mas na maior parte do tempo permaneci sentado, balançando as pernas ao ar. O pensamento é tudo que precisamos para sermos felizes, ou tristes. Nada mais.

O velho sabia que eu não morreria ali. Durante três dias na semana o rio transbordava. Suas águas alagavam o casebre até tocar os dedos dos meus pés. Junto com o rio, uma quantidade enorme de insetos aparecia e, com eles, calangos eram atraídos.

Hoje choro a lembrança daqueles anos. Duvido de mim mesmo, penso se realmente sou o que vivi. Não sei. Somente sei que os pés no chão não pagam o sopro do vento contra o rosto. Mesmo o chão das grades do desgosto não é capaz de apagar o que somos. Ou sonhamos que somos.