quinta-feira, outubro 26, 2006

Pequenos Pássaros - 4° Capítulo

Paro à porta da cafeteria ao pressintir um vulto atrás de mim. Giro lentamente o pescoço e vejo uma senhora acompanhada de um homem. De viés, cedo passagem apenas para que não notem o sangue que trago sobre o rosto. “Obrigado, cavalheiro”.

Vejam só, o mesmo casal da estação de trem. O casal protagonista da mais doce cena da minha viagem agora me dá o privilégio de compartilhar de seu ambiente durante um breve café. Me sinto lisongeado. Sem dúvida, há muito o que aprender com pessoas tão sensíveis. Não sei se Julien, de Stendhal, dispensaria tamanho trato com sua amada. Entregar-lhe seu próprio chapéu, não antes de enfeitá-lo com um ridículo laçarote, demonstra não somente rara cordialidade, mas uma estúpida polidez, própria daqueles que tentam bajular o coração alheio. Gente hipócrita! Sou capaz de arrancar minhas unhas se não estou com a verdade. Casais como esses são responsáveis pela proliferação de bordéis e servem, quando muito, como matéria-prima para romances apócrifos.

Vou ao toillete, não faço questão de olhares estupefatos como o do garçom. Lavo meu rosto e deixo escorrer a tinta vermelha ralo adentro. Estou pronto. É hora de abrir as janelas daqueles que se recusam a enxergar.

Saio do banheiro, acendo um cigarro e sento-me à mesa mais próxima do casal. “Cappuccino, por favor”. Ela, debruçada sobre os cotovelos, finge admiração pelo monólogo do marido. Ele, efusivo nos gestos, se gaba de algum acontecimento envolvendo notas promissórias ou coisa parecida. Após algumas risadas, educadamente, ele se retira ao toillete. Ela sorri, antes de pegar em sua bolsa um pequeno estojo de maquiagens para ocupar as mãos.

Apago o cigarro, levanto e, de chofre, sento-me à sua mesa. “Preciso de um olhar”. Ela deixa o batom cair e olha para todos os lados gritando em silêncio por socorro. Seguro sua mão e sinto seu receio de enfrentar meus olhos. Ela se desvencilha e grita pelo garçom. Daqui posso sentir a palpitação em seu peito. Seguro sua mão mais uma vez, desta vez com força, e a obrigo a me encarar por alguns instantes. Assustada, seus olhos ocilam entre os meus. “Volte para o seu lugar, volte para casa”.

Após ouvir isso, a senhora faz um gesto para que o garçom não se preocupe com o inconveniente e retorne aos seus afazeres. “De quem a senhora foge?” Ela novamente faz força para soltar sua mão da minha. “Vejo que a senhora não é capaz de perceber... Hoje viajamos no mesmo trem, mas por caminhos inversos. Eu já estive onde a senhora está, pensei que eu bastaria, que dormiria bem, longe do meu passado. Não, nada disso é verdade, nunca nos livraremos de nós mesmos. Nunca. Mesmo no limite, O Sonho de um Homem Ridículo sempre vem nos socorrer”. Aperto mais forte sua mão até as pontas de seus dedos ficarem vermelhas. “Eu voltei para apagar meu passado. Eu vou revelar ao mundo as cores do meu universo. Faça o mesmo, pobre criatura... faça o mesmo”.

Grande parte das pessoas que nos cercam, diante de um acontecimento como esse, reagiriam segundo cômodas convenções sociais desde muito estabelecidas. “Cuida-se de um tratante! Um louco! Uma mente insana, sejamos compreensíveis...” Há outras, não tantas e nem tão singelas, dotadas da mais autêntica nobreza de espírito, que se perguntariam: “Quem aqui é o louco? Estará ele com a razão?” Ainda há aqueles que vacilam entre uma reação e outra, para os quais Dante previu estar guardado o mais cruel recanto do inferno. Esta senhora diante de mim pertence a este último.

Com os lábios tremendo, ela engole seco para não chorar. Seu queixo se movimenta de forma estranha até ela travar as próprias bochechas com os dentes. Nesse momento, descanso meus dedos e deixo sua mão fluir de volta para o seu pequeno mundo de faz-de-conta. Saco do bolso a pequena ampulheta embrulhada em meu lenço e a deixo sobre a mesa. Antes de me levantar, a satisfação de pensar que seu chapeuzinho está estraçalhado nos trilhos do trem me tira um sorriso. Entre a dança do enfeite que pende sob a aba de seu chapéu, a senhora me observa com pavor.

Já em minha mesa, vejo o bom marido retornar do toillete e agachar-se para buscar o batom caído. Após o gracejo de praxe, ele percebe a ampulheta e questiona a respeito do objeto. Antes que a areia se esvaia, a senhora diz se tratar de um presente. Um presente dela para ele.