quinta-feira, outubro 26, 2006

Pequenos Pássaros - 5° Capítulo

Com a greve na fábrica de sapatos outras eclodiram pela cidade. Temendo represálias, o partido adotou medidas de segurança para evitar que seus líderes sofressem retaliações da polícia. Uma das medidas obrigou meu pai a enterrar os livros de sua biblioteca em um buraco no quintal de nossa casa.

Sem a espada sobre minha cabeça, passei os dias sentado ao lado do fotógrafo da câmera escura. Sem mais ser obrigado a ler páginas e páginas de livros, pude fazer o que eu realmente queria, viver o mundo real.

Meu pai sempre me dizia que o mundo é dos homens de letras, e por isso me obrigava a ler. Mas agora eu pergunto: qual mundo? O mundo de abstrações, de idéias inconcebíveis, de vidas imaginadas, de seres fantásticos, de fortalezas mágicas, de objetos encantados? Sim! Esse é o mundo dos homens de letras! Um mundo irreal... um mundo travestido. Um mundo de signos ao qual não pertencemos. Um mundo que flui por uma dimensão oculta, sem lógica e sem razão.

A única realidade dos livros é a morte, o verdadeiro sono sob a terra. Os livros morreram! Foram enterrados em meu quintal. Amém. Sei que não me bastam as palavras, mas os santos sabem como sonhei com o epitáfio: “Aqui jaz a perdição da humanidade”.

Não! A realidade dos livros é irreal! Foram enterrados, mas não estão mortos! São como sementes... estão vivos dentro de mim... podem brotar a qualquer momento. Não sou capaz de sustentar esse fardo! Não! Os livros morreram sua morte inventada... até quando serei torturado pelas palavras?

Em um daqueles dias, quando ao lado do fotógrafo, vi meu pai atravessar a rua diante de nós. Ele trazia dúzias de panfletos escondidos em seu casaco. Eram escritos revolucionários, dizeres inflamados sob a forma de poesia. Lembro-me que um deles assim dizia:

Quando retirarmos do peito este punhal martelado,
A música retumbará vermelha entre as foices do campo
E em cada canto a centelha do povo alado
Provará ao tempo que não estou sonhando

Neste dia, me verás como tu,
Serei igual a ti,
Terei para mim que sou o todo
Enquanto o todo em ti és apenas tu

Uma vez que somos povo
Somos sós
Somos sóis
Somos nós

Somos o silêncio
Somos a voz
Somos o mar do Leviatã
Somos!
Soamos


Respirei fundo para tomar coragem e corri até meu pai para lhe pedir que deixasse ser fotografado. Eu estaria debaixo do pano preto para olhar em seus olhos, para conhecê-lo, para enxergar sua alma. Eu sonhava com aquilo. Creio que não é preciso dizer que sua recusa foi peremptória. “Meus camaradas me esperam, não tenho tempo para bobagens!

Há vezes em que o mundo real se comporta como o mundo dos livros. Isso ocorre quando os acontecimentos se desenrolam no limiar do imaginário. É como uma bolinha de sabão ou o bater de asas de uma borboleta. Será que isso realmente aconteceu? Eu só posso estar sonhando... Não... é real, é maravilhoso porque incompreensível. Aí está a beleza... Penso que aquele vácuo em minha barriga nasceu de algo assim. Senti-me como se tivesse percorrido todo o universo em busca da mais remota estrela para engolir um pedaço de sua luz.

Tudo bem, garoto. Isso não vai demorar muito, vai?” Como um raio, saltei para trás da câmera escura. Ele mudou de idéia. Mas por quê? Não me importa, quero aproveitar esse momento. Quero um olhar, um olhar apenas.

Meu pai não sabia como se comportar diante da câmera. Da mesma forma que lhe era doloroso conversar sobre trivialidades, nunca sabia onde colocar as próprias mãos. Optou por deixá-las guardadas em seus bolsos.

Olhe para essa lente. Olhe para mim... O que é isso? Não pode ser tão simples... Como não pude perceber?

Nada vi nos olhos de meu pai. Parece estranho, mas ele tinha um espírito tão singelo que fui incapaz de compreender. É mais ou menos o que acontece quando tentamos ler um livro e duas pessoas conversam ao nosso lado. A fala de apenas duas pessoas é capaz de penetrar em nossas mentes até não sabermos mais o que é deste mundo e o que faz parte do mundo dos livros. Por outro lado, quando lemos cercados de muitas pessoas falando ao mesmo tempo, o mundo real se torna incompreensível, e o mundo dos livros floresce para nós. Quanto mais conturbada é a alma, mais evidente é o ser que ela compõe. Quanto mais simples, mais obscuro e indecifrável ele se apresenta.

Depois que o fotografei, os panfletos que meu pai trazia caíram de seu casaco. Ele se abaixou rapidamente para apanhá-los, mas um dos papéis voou até os pés do fotógrafo lambe-lambe. Ele o leu, levantou a cabeça e rasgou a poesia. Meu pai tentou correr, mas o fotógrafo o deteve pelo braço. Era um agente disfarçado. Nada mais poderia ser feito. Graças a mim, meu pai passou os dez anos seguintes em uma prisão.

Além deste retrato que dorme desbotado em meu bolso, daquele dia, ainda trago na lembrança o que restou do panfleto rasgado pelo fotógrafo.

Uma vez que s
Somos sós
Somos só
So

S