quinta-feira, outubro 26, 2006

Pequenos Pássaros - 1° Capítulo

Dor.

Abro os olhos e tudo fica em silêncio. Mas o que foi isso? Respiro fundo e sento-me à cama. Não sei. Acabo de esquecer o que sonhei. É tão estranho. Olho para os dorsos de minhas mãos, viro-as e observo suas palmas. Nada. Nunca saberei o que se passou pela minha própria cabeça há tão pouco. Em vão, faço mais um esforço para recordar. Apenas sinto-me desconfortável. Não sei se pelo sonho que não lembro, ou por não conseguir me lembrar.

Os sonhos costumam se repetir? Tento dormir de novo, mas minha voz interna grita o desespero da noite. Não posso suportar mais a força de minhas pálpebras. Abro novamente os olhos. Um leve contorcionismo, e me levanto. Caminho até à mesa, passo as vistas pelo conto que ontem escrevi e, naturalmente, o rejeito. Não consigo mais.

Ando até a janela. Através dela, vejo pequenos pássaros que ciscam no jardim de uma manhã sem cores. As árvores estão sem frutos e sem folhas. Apenas um feixe de luz vence as nuvens e desenha no ar, entre os galhos da nogueira, uma atmosfera serena. Debaixo daquela luz, sinto a dor de uma bromélia que insiste em resistir ao inóspito tempo. Absorto nessa bucólica cena, contemplo a chegada de mais um outono.

Permaneço parado diante daquele quadro. Eu e tudo mais que não os pequenos pássaros. Eu e o mundo lá fora, estéril, plácido, morto. Mas nada é tão morto que não contenha pequenos pássaros.

Por alguns instantes brinco de desfocar minhas retinas. Ora o jardim, ora o vidro da janela. O jardim, a janela, o jardim, a janela. Um sutil movimento, e tudo se fecha, embaça. Tenho que limpar esses vidros. Tirar essa teia, consertar o lampião.

De súbito, os pássaros voam e o tapete de folhas se desfaz. A janela bruscamente se abre e faz sangrar um corte em minha testa. O vento traz galhos e levanta as cortinas. Herege, derruba Kafkas, Göethes e Kazantzakis. Sábio, preserva os russos e leva consigo, para todo sempre, meu conto da madrugada.

Com esforço, fecho a janela. Lá fora, o vento varre aos céus as tintas daquela preciosa tela. Em pouco tempo a terra estará molhada. Afortunada bromélia. Preciso fazer um curativo. Não posso mais viver aqui. A pintura agora está borrada. Tenho que voltar. Não posso mais fugir. É hora de saltar as janelas. É hora de ir para casa.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

... "entre os galhos da nogueira"...
rsrsrs...

outubro 28, 2006 6:58 PM  

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