sexta-feira, outubro 06, 2006

Um Conto Fantástico (1ª parte) - Língua de Urubu


Nasci fiapo de gente no dia em que minha mãe morreu. A pobrezinha, subindo ao céu, me segurou tão forte que quase fui junto, mas meu pai me teve pelas pernas. O velho, repleto de sabedoria, me abençoou dizendo que eu voaria alto pela vida. Estava escrito que assim seria, eis que a missão divina de minha mãe ali se cumpria. A de me trazer ao mundo.

A bruxa da vila, parteira, não pensava assim. Era mulher velha, cujos olhos fatigados já viram muita coisa nessa vida. Ela sabia que os bons espíritos pediam licença para nascer, não abriam portas aos pontapés. Os filhos que matam quem lhes deu a vida devem expiar pelo sangue. E o povo lhes trará a redenção, assim o demônio sairá expulso dessa terra.

Em pouco tempo, o povo cercou o casebre em que nós estávamos. Não havia como sair dali. Os gritos que viam lá de fora anunciavam a carnificina. O tilintar das foices iluminava a noite do massacre. As ordens de redenção brotavam daquelas bocas sedentas por sangue. Minha pele era a manta que cingia o espírito maligno. Eu deveria morrer.

Meu velho pai não suportou a dor. Em um gesto do mais puro amor, desembainhou seu punhal e o cravou na testa da feiticeira. Batizou-me com suas lágrimas, estendeu seus braços à roda dos infantes, me fez girar, e morreu. Na verdade, a roda era o próprio útero de minha mãe. Meu pai me enterrou de volta em sua barriga. Ali eu estava seguro.

Nesta vida sem fé, guardo saudades daquele tempo ido. Tempo em que a realidade não estava somente naquilo que víamos. Tempo em que a poesia dava rumo à sabedoria.

Naquela mesma noite, o povo em procissão entregou o corpo de minha mãe ao rio. Suas correntezas nos levaram noite adentro, até encontrarmos a aurora em uma pequena praia ribeirinha.

Posso dizer que nasci duas vezes na mesma vida. Pelas mãos de uma bruxa, e entre as asas dos abutres. Sim, devo o sol àquelas aves.

Os pássaros que vivem da morte - pois ela não trai - avançaram famintos sobre a barriga de minha mãe. Um profundo corte e todas as tripas foram suavemente sugadas, cada víscera saboreada com tamanho deleite; cada pegada, que antes quase arrastada pela desconfiança do tamanho banquete, agora se enchia de sangue. Como um artista retira da pedra sua escultura, aquelas aves me fizeram nascer.

Os urubus foram os primeiros pássaros que vi, e os únicos que me beijaram. Lembro-me até hoje daquelas tantas línguas sujas me limpando, da áspera frieza dos bicos negros, do brilho seco daqueles olhos. Eu era azedo, e o doce para aquelas bocas é salgado para tantas outras. Posso sentir o gosto daquele dia. Nós, iguais, tínhamos olhos e vida, além de banguelas. Agora, confesso que, por ter em punho essa pena preta, somos ainda mais. Somos mais iguais.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Irmãozinho te amo muito!!!!
Desejo toda a sorte do mundo com seus contos!!!
Vc vai longe!
Bjbjbj

outubro 26, 2006 2:54 PM  
Anonymous Anônimo said...

O talento eh visivel,so falta ser "descoberto"...

Te amo sempre!

Marianna Bretas

outubro 26, 2006 3:30 PM  
Anonymous Anônimo said...

Muito bom o conto! Vim conhecer seu cantinho.
Bom fds

outubro 27, 2006 12:54 PM  

Postar um comentário

<< Home