quinta-feira, outubro 26, 2006

Pequenos Pássaros - 2° Capítulo

A estação de trem está quase deserta. Sentado em um caixote de madeira, um velho negro fuma seu cachimbo, ao som de Drown In My Own Tears. Ele estende a mão e me pede algum trocado. Com cuidado para não tilintar, ponho a mão em meu bolso de moedas, sinto o peso de tantas para, em seguida, oferecer-lhe minha mão vazia. Em troca recebo um suave sorriso entre os pêlos amarelos de sua barba branca. “Sinto muito”.

Na extremidade da estação, apenas um casal. Ele, de sobretudo, segura o jornal embaixo de um dos braços. Ela, agarrada ao braço livre do marido, se esforça para conter o próprio chapéu e se proteger da chuva.

O trem demora. Um filete de sangue supera o esparadrapo e desce sobre meu rosto. Pego no bolso do paletó um lenço e limpo minha testa. Do outro bolso retiro um antigo retrato já desbotado. Nele, meu pai empresta um de seus melancólicos olhares. Faz tanto tempo.

Ao largo, ouço o apito do trem. Finalmente, a máquina freia estrondosa e abafa o jazz do velho negro. O casal precipitadamente salta para dentro de um dos vagões. O chapéu dela voa e é carregado pelo vento. Ele tenta reavê-lo, mas é tarde demais, o trem está partindo.

A viagem dura cinco horas. Hesse faz parecer bem menos. Chego à cidade sentindo um misto de euforia nostálgica e depressão desapegada, nitidamente influenciado pelo Lobo da Estepe. Não posso mais!

Desço do trem e vejo que o casal que embarcou comigo também desce. Agora, ela usa o chapéu dele, cuidadosamente improvisado, adornado com uma pequena fita em forma de laçarote.

Respiro fundo. Observo como tudo está diferente. Oito anos, tudo tão diferente. Meus passos são lentos demais para acompanhar o ritmo dessa gente.

Ando até o bar e, nesse curto trajeto, sou atropelado algumas vezes. “Um café, por favor”. Um café aparece. Nenhum olhar cruzou com o meu. “Açúcar? Ah, sim, açúcar”. Enquanto me sirvo, noto pequenos círculos vermelhos se expandirem dentro do açucareiro. Levo minha mão à testa. Estou sangrando novamente. “O toillete?

Retiro o esparadrapo e dispenso um breve tempo diante do espelho. “Maldita janela! Uma janela não pode se abrir assim tão de repente. Assim como alguns livros não podem ser abertos de repente. É preciso estar preparado para eles, é preciso saber como domá-los”. Ao se deparar com certas verdades, aquele que não as suporta sucumbe perante as janelas que se abrem. “Maldita janela, maldita literatura. É mais seguro enxergar o mundo como um jardim retratado num quadro renascentista, do que desbravar os mistérios do espírito humano. Desde que, é obvio, não tenha janelas. Odeio janelas”.

Enquanto, diante de minha ferida, divago sobre literatura e janelas, percebo que o sangue manchou minha gravata. Pelo espelho, vejo um homem entrar no banheiro. Ele pára, me observa com desconfiança e me oferece um sorriso. Um desses sorrisos gratuitos entre estranhos, desnecessários, que refletem uma falsa simpatia, ou mesmo revelam a subserviência interessada dos subalternos. Tenho que sair daqui. “É sangue? Com gelo sai”. Não respeito pessoas observadoras. Com desdém, saio do banheiro sem responder.

Volto ao bar. “Gelo somente acompanhado de whisky? Tudo bem, oito anos, por favor”. Oito anos, faz tanto tempo. O gelo não surte efeito, o sangue gostou da minha gravata. Bebo a dose em um gole. Preciso de um cigarro.

Do balcão, vejo o homem sair do banheiro. Ele pára assim que ultrapassa a porta, ajeita seu paletó e oferece o mesmo sorriso forçado ao primeiro passante. Definitivamente, não gosto de pessoas assim. O cigarro fica para depois.

Ando em direção à Avenida Pederneiros. Minhas primeiras lembranças têm essa avenida como cenário. Eu devia ter oito ou dez anos de idade. Não havia tantas casas, poucos comércios por perto. A rua era de terra e bem mais escura e larga do que agora. Aqui meu pai costumava freqüentar as reuniões do partido. Um dia, escondido, eu o segui.

Lembro-me perfeitamente. Sou capaz de ver um homem agarrado a este poste a gritar palavras de ordem à pequena multidão de operários. Não entendo o que ele diz, mas, certamente, nada muito diferente do que Zola, em Germinal, ou Gorki, em Mãe ou Pequenos Burgueses, disseram. O que importa é a imagem fantástica que guardo em minha memória até hoje. Neste poste. Neste, bem à minha frente, o homem que se equilibrava olhou em meus olhos e berrou. Incrível como as remotas lembranças sobrevivem em câmera lenta. Aquela foi a primeira vez que alguém olhou no fundo dos meus olhos. Nunca irei esquecer esse dia.

Estranho sentimento daquele que mergulha em recordações, mesmo quando o homem do sorriso calculado o segura pelo braço. “Senhor? Senhor, essa fotografia é sua?” O que é isso? “Não, é meu pai... Quero dizer, sim, é minha”. Arranco o retrato de sua mão. Mais um sorriso estúpido, agora acompanhado daquele olhar que transparece o regozijo dos pequenos espíritos quando praticam uma boa ação, e tchau. Espero nunca mais ver esse homem, detesto pessoas solícitas. Me viro e sigo caminhando. O homem lamenta, sorri e vai embora.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Dieguito!!!! Parabéns homi rapaz! Parei nesse por enquanto mas já continuo...Adorei! Tá muito bom!!!!!! Sucesso! bejos Côle

outubro 26, 2006 6:04 PM  
Anonymous Anônimo said...

"It brings a tear into my eye..."

outubro 28, 2006 6:59 PM  
Anonymous Anônimo said...

gostei da passagem de "o toillete?" para o outro parágrafo...

acho q faltou uma crase no 14° parag, em "a minha frente"...

que incômodo esse sangue que não pára de escorrer e que suja e expõe...

outubro 28, 2006 7:03 PM  

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