segunda-feira, outubro 16, 2006

O Ritual


Quando derrubei o galho, temi ter meus ossos frios sob a raiz de uma planta qualquer. Por sorte, o barulho não ecoou, e os tambores reiniciaram o ritual. “Não me viram, não me viram”, respirei aliviado. “Como é bom não ser notado quando se é tão diferente”, pensei. “Mas por que, ao mesmo tempo, sinto esse desejo de ser descoberto?”. Estranho desejo esse que habita no coração de quem se esconde. “Estou aqui”, diziam meus olhos, “estou aqui”. Aquilo não passou de um pobre descuido do coração que pulsa mergulhado na beleza, enquanto o espírito, em apuros, plana sobre cabeças.

Alcançar a copa daquela árvore não exigiu sabedoria, tanto quanto sangue dado pelas minhas mãos para colorir suas folhas. Aos insetos, dei apenas o quente suor que agora esfria meu corpo. Ao céu, nada; o tempo se ocupou de lhe dar o sol, e depois, novamente, a lua.

Traguei a luz que penetrava tranqüila pelo ângulo perfeito apresentado a mim. Apenas um teste entre as claras sombras formadas por pequeninas folhas translúcidas. Que efeito fabuloso! Não sei dizer se por conta de algum fruto silvestre ou pela longa lente que trazia comigo, o fato era que minha visão vencia os ramos e descortinava o vasto horizonte me permitindo ver além. Estava tudo pronto para a foto ideal.

Ao redor da fogueira, círculos em sucessão, formados por centenas de corpos borrados de azul e vermelho, giravam alternadamente. O menor e mais próximo do fogo seguia para a esquerda, o seguinte para a direita, e assim por diante, no ritmo dos tambores, até a mais larga e distante ciranda. A engrenagem humana dava ao campo luz e movimento. Os raios do fogo, entre aquela gente até então calada, faziam curvas antes de penetrar pela lente da minha câmera.

Suavemente, vozes femininas preencheram o ar com música. A vibração celestial, sustentada por uma única nota, parecia invocar espíritos da floresta. Eu estava entregue àquela fantasia. Meu ceticismo acadêmico caiu por terra perante a leveza daquele cântico. Ali alcancei a serenidade para perceber que o sentido da vida está em senti-la. Que a todo o momento, em algum lugar do mundo, um pôr-do-sol acontece.

Não conseguia mais fotografar. Tive medo de que tudo aquilo fosse verdade. Medo daqueles corpos dançantes. Medo de não estar só, aqui, no topo dessa árvore, nesse mundo. Medo da minha própria hipocrisia em apelar por uma intervenção divina quando o galho caiu.

De repente, o medo deu lugar ao encanto. No céu, acima dos círculos, aves se posicionavam sobre as cabeças. Milhafres e andorinhas, tucanos e gaviões, todos e cada um, giravam no mesmo pé da dança. Cada pessoa estava representada no céu por um pássaro. Acima de cada um, um par de asas. Não pude registrar. Nessa hora já estava atordoado, e minha máquina, na peleja, jazia em cima de um formigueiro.

As mulheres seguiam cantando acompanhadas pelo som das aves. Céu e terra giravam juntos na dança da natureza. Aos poucos, gritos nasciam dispersos berrando alegria. Quando um grave sobressaiu latente, os tambores cessaram. Mulheres e aves silenciaram. Todos, imersos na poeira, pararam de rodar, e ergueram os braços oferecendo dedos, como se quisessem dar um porto aos pássaros.

Por um segundo, um segundo apenas, eles também pararam. Saindo do transe, voltaram a bater asas lentamente. E então, liderados pela águia do círculo menor, que voou certeira bico adentro da fogueira, todos os pássaros desceram formando uma espiral. Da árvore, era um gigante cone com vértice no centro dos círculos humanos. O fogo subiu alimentado pelos pássaros. Subiu tanto, até engolir por completo o cone voador.

1 Comments:

Blogger Vitor Barbarisi said...

Estranho desejo esse que habita no coração de quem se esconde.

julho 20, 2007 12:09 AM  

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