quinta-feira, outubro 26, 2006

Pequenos Pássaros - 6° Capítulo

Agora que estou diante da casa onde vivi, minha ferida volta a sangrar. Volto no tempo, volto ao lar após oito anos de solidão. Mais noventa e dois e eu seria um Buendía. Mais perguntas e eu teria menos respostas. Mais janelas, menos saídas. Mais livros que não escrevi, menos correntes presas aos meus pés. Mas nada disso importa. Quero viver no silêncio, nas águas paradas que, dizem, são as mais profundas.

Durante oito anos, permaneci isolado em uma casa no campo para escrever um livro em homenagem a meu pai. Mas não consegui. Me obriguei a ler obras que jamais imaginei que leria, mas não bastou. Sofri a culpa de não ser quem ele gostaria que eu fosse. Sofri a dor de ter velado sua liberdade.

No entanto, aprendi que o sofrimento é a matéria-prima da arte. Que é preciso morrer por dentro para se tornar vivo para o mundo. Me matei um pouco a cada dia, deixei minha ferida aberta, escancarada, sangrando sobre minha testa, sobre minha letra torta, sobre minha alma morta. Obrigado, Gogól, mas não bastou.

Descobri que minha alma não conhece a linguagem das palavras. Ela fala ao mundo através das formas, do espaço, dos olhos, da luz. Meu espírito respira as tintas do planeta e desvenda as cores da beleza que há naquilo que não pode ser dito. Agora quero olhar mais uma vez nos olhos do meu pai, quero pintar seu coração. Quero lhe dar o que tenho de melhor.

Lá está ele! Na varanda de sua casa, cochilando em sua cadeira de balanço. Minhas pernas tremem. Meus passos seguem tortos até o portão. Sinto como se meus pés fossem de chumbo e resto do meu corpo de papel. Minhas mãos estão suando. Vacilante, caminho até seu lado. Encosto minha mão em seu ombro. “Pai?

Meu pai desperta e lentamente move seu rosto em minha direção. Seu bigode está branco como a neve. Com cuidado, retiro seus óculos e olho em seus olhos. Ele não me reconhece. Nem mais poderia. Meu pai está cego.

Meus joelhos dobram e me jogam contra o chão. Sinto saltar as veias de meu pescoço. Minha boca se abre, mas nenhum som sai de mim. Os dedos de minhas mãos se contraem como se fossem as garras de uma águia. Agonizo em silêncio aos pés de meu pai. Uma lágrima desce pelo meu rosto e cai vermelha no chão. Acabo de me lembrar o que sonhei esta noite.

Me arrasto para dentro da casa até conseguir um apoio para me levantar. Não é possível! Eu tinha certeza, os livros são como janelas. Quando abertos, a luz que os atravessa descortina sentimentos que sequer supúnhamos possuir. Depois de fechados, a pena para os que ousaram enfrentá-los é ter, como ferida, seus espíritos flutuando em um universo para sempre incompreensível.

Livros e janelas refletem um mundo parcial, um mundo visto apenas através de suas molduras. Bebemos das maravilhas desse mundo de falsas verdades até o dia em que somos impelidos a adentrá-lo. Nesse dia, pulamos as janelas e respiramos as cores da vida, vencemos as molduras dos livros e conhecemos um pouco mais sobre nós mesmos.

Sigo cambaleante até a biblioteca. A partir de amanhã não teremos mais flores nessa casa. Eis o fim! Eis o Nome da Rosa! Pego no bolso minha caixa de fósforos e inicio por aquele que revelou ao mundo a beleza daqueles que queimam no inferno. Adeus, Fiódor! Esses tantos poetas e pensadores te ajudarão a arder em chamas esta biblioteca. Não há mais com o que se preocupar.

O fogo queima na ribalta de uma dimensão lúdica. As palavras, agora mortas, voam no calor da fumaça. Elas estão livres! Não há mais significado... Me sinto tão bem... por que estou chorando?

Abro a janela. Pequenos pássaros voam sobre a casa. É hora de correr o mundo. Ele está vivo! A ferida em minha testa não sangra mais. Um último olhar, e entrego o retrato de meu pai ao fogo que arde sobre Dom Quixote.

Volto à janela e, de um pé, salto enfim para o meu mundo.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Arrepiadamente genial!!! É tudo o que consigo dizer sobre seus contos...pra variar, me faltam palavras para expressar-me melhor, mas certamente, um dia, me inspirando em vc, vou poder dizê-las!

ex-Daryl Hannah

março 21, 2008 11:00 PM  

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