quarta-feira, dezembro 20, 2006

A Carta



(Quadro "Fome" de Diego Trapa - tinta acrílica em tela de 41cm X 24 cm)

Eventuais Leitores,


Devo dizer que vivo um momento de escuridão literária. Não encontro as palavras certas para me expressar e isso, definitivamente, me angustia. Sei que elas estão ali, ao meu alcance, mas por algum motivo não me permitem toca-las. É como se boiassem em um mar de dizeres constantemente influenciado pela lua nova, ou mesmo dormissem em um quarto escuro e silencioso.
Só não me digam covarde por recusar a luta para dizer, se covardia não há em preservar as palavras da dor de não se fazer compreender.

Por ora permito-me transcrever, ipsi literis, uma carta que há três dias recebi e muito me emocionou.

Prezado Senhor D. Trapa,

Peço-lhe que não me julgues pela razão que me falta neste momento. O que lhe contarei em seguida é apenas fruto daquilo que trago comigo. Prometa-me que não irá rir ou mesmo chorar. Apenas leia atentamente o que tenho para lhe dizer. Depois rasgue esta carta. Não a queime, pois sei que, como o tempo, meu sentimento é indigno do fogo.

Hoje, por alguma razão que não sei dizer qual, acordei um tanto distraída. Meus olhos estavam displicentes e minhas mãos mais velhas do que de costume. As paredes ao meu redor estavam vibrantes, repletas de lucidez, enquanto os ponteiros do relógio insistiam em vacilar entre um segundo e outro.

Num átimo, meu espírito insensato fez com que tudo se tornasse óbvio. A respiração silenciosa do hospital, o cheiro de vela queimada, o som das rezas ao lado, o sol que arde no céu antes disso. Nada mais me era estranho, nada mais me seria incomum. Naquele instante, o mundo se revelou evidente em minha alma.

Foi quando escorreguei meus olhos sobre o retrato do passado e me deliciei com o tempo em que caminhava pelas calçadas de mãos dadas, aprumada, sorridente pelo eterno amanhã da juventude. Época em que meu rosto era moldado por traços finos e delicados, um tanto esnobes, assumo, mas de uma leveza singular...

E quando de volta ao encontro de minhas tranças brancas, permaneci descompassada pelo relógio que ia e vinha relutante.

Foi quando então, de súbito, minha atenção pousou sobre meu próprio braço. Pode parecer engraçado, mas achei curioso notar que seus pêlos estavam ligeiramente arrepiados. Não sei dizer por quê, mas estavam.

Fui tocada pelo sincero prazer de estar apenas comigo. Fiz de conta que meu braço era uma pequena plantação de trigo. Acariciei seus pêlos levemente, assim como o vento espalha as sementes sobre a terra. Uma terra fértil, um vasto campo, eu e todo o universo em um único corpo, um único tempo, retilíneo, estanque e azul.

Meu corpo se deliciava submerso no delírio que se apoderava de mim, quando o senti enrijecer. Era como se o ar a minha volta cristalizasse, me aprisionando dentro do mais belo diamante que jamais existiu. E não duvide, senhor, quando lhe digo que me pus especialmente alegre com aquilo.

Voltei a mim somente quando a enfermeira entrou em meu quarto trazendo o café da manhã. Sorri para ela e percebi que seus olhos brilhavam tomados de certa complacência. Por essa razão, bebi com gosto um grande copo de leite e comi todas as frutas sem desdizê-la. Ofereci-lhe novamente um sorriso, engoli os medicamentos que me trazia e, por fim, segurei sua mão em despedida.

Quando a enfermeira se foi, me levantei e caminhei até a janela. Antes de alcançá-la, percebi que em seu parapeito um pequeno caracol se arrastava. Me aproximei mais um pouco e dobrei meus joelhos para observá-lo melhor. Detidamente notei a beleza de seu vagar tranqüilo, de suas antenas, de suas cores. Quanta graça há no espanto que nasce da pequena natureza!

Coloquei meu dedo em seu caminho, mas o pequeno animal não hesitou em superá-lo. Subiu em minha unha e seguiu sua jornada. Em uma nova tentativa de pará-lo, atirei contra sua estrada minha plantação de trigo. Mas ele a devastou de forma irresistível, deixando para trás apenas a lembrança de um passado morto.

De repente, senti o vento lá de fora soprar contra meu rosto. Soltei minhas tranças e me fartei com o jorrar de meus cabelos brancos. Agarrei com cuidado o pequeno caracol e fechei meus olhos. Joguei minha cabeça para trás para senti-lo melhor e, naquele instante, parei o tempo em minhas mãos. Ele estava completamente dominado, assim como um rato cercado por piratas, inerte em um adeus incapaz de separar. Qual veneno, Meu Deus, destruiria a perfeição daquele momento?

Um ser tão singelo, gelado, doce e mole não era parte de mim. O meu universo não estava completo, faltava-me aquilo. O tempo. O tempo que não mais azul como antes, em minhas mãos era verde. Verde, singelo, gelado, doce e mole.

Cerrei meu punho com mais força até destroçar o pequeno casco do animal. Senti seu corpo gosmento escorrer macio por entre os dedos de minha velha mão. Mantive-me serena durante esse instante sagrado. Relaxei meus pés, em seguida minhas pernas, meu ventre, vértebras, peito e braços, até que minha mão se abriu. Então pude ver que o tempo não estava mais lá.

Ele nunca está.

Ah, meu caro, quero que saibas como rogo pelo dia em que permitas que seu coração desfrute de tamanha ventura. Mas enquanto esse dia não nasce, incipiente Escritor, leve dentro de ti algo deste pequeno relato. Ele traduz um agradecimento pelos contos que escrevestes, e um sutil apelo para que prossigas nessa dura jornada das letras. Por favor, não passe outros novembros em branco. Não nos prive deste mundo denso e cru onde sua alma habita.

Sempre encantada,
Liv T. B. Von Max
.”

2 Comments:

Blogger Mateu Velasco said...

Quem é livi?
demais esse!
abç

janeiro 15, 2007 7:38 PM  
Blogger D.Trapa said...

Esse conto é uma pequena homenagem aos geniais atores do mestre Ingmar Bergman:

Liv Ullmann, Ingrid Thulin, Bibi Andersson e Max Von Sydow.

fevereiro 01, 2007 6:27 PM  

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