quinta-feira, abril 26, 2007

A Mosca

(Quadro "Desculpa?" de Diego Trapa - Tinta acrílica em tela de 40 cm X 50 cm)
Se aspiras saber, digo que tudo começou e terminou à mesa do café da manhã. E lá estava eu, por óbvio. Não sei se embebido em minha serenidade matinal ou ainda bêbado como um pescador de vestígios fabulosos. Talvez eu não fosse mais tão belo como ontem. Talvez a carroça tenha virado e trazido à tona minha realidade de estivador de remelas. Talvez eu tenha retornado, talvez um mero sonolento solitário.

Naquela manhã de fraca poesia, próximo a um cataclisma onírico, reparei como o som da fritura na panela se assemelha ao caminhar de um Raskolnikov sobre a neve. Mesmo sem nunca ter sentido o gosto da neve, eu sabia que era assim. E se não fosse, qual haveria de ser o problema? Por acaso alguém sabe qual som brota das tempestades solares?

Ah, como meu sangue está pesado... Como estão leves os meus ossos... Preciso de um novo coração! Mas, por favor, não conte isso a ninguém. Conto-lhe apenas para mim.

Ela que perde em habilidade para uma lontra, minha delicada empregada de duzentos quilos, arremessou ao ar um prato com dois ovos fritos e mal passados que, literalmente, ao choque contra a mesa, decolaram numa linha vertical e, em câmera lenta, aterrissaram intactos sobre o mesmo prato.

Nem o acasalamento de duas centopéias seria mais incrível!

Sei que meu estado de espírito àquela hora não comportava qualquer reflexo, e por esse motivo, talvez, lhe afirmo que jamais esquecerei o que vi.

Duas bolas de fogo alçando vôo perante meus olhos, dois cometas desgovernados que subiam alegres, flutuando envoltos por uma camada plasmática de doçura e encanto. E no ápice de sua luta gravitacional permitiram-se deformar, conjugar novos corpos, engolir moscas como uma planta carnívora, unir-se e separar-se como inéditos projetos físicos sob a pena de Deus. Somente depois, em meio à abstração de seus desejos antes contidos, deixaram-se cair. Cair a queda dos vitoriosos. A queda daqueles que triunfam enquanto o fogo queima em suas entranhas. Sem mais, pousaram certos da vitória.

Apenas dois ovos. Dois ovos fritos cientes da verdade do universo. “O mundo é o que eu quero, ou o que sou capaz de querer”, eles diziam. “Não tenha medo das telas em branco... Saiba que elas aceitam tudo”.

Não é preciso lhe dizer que diante daquele par de gemas voadoras não pude esboçar qualquer reação, senão a de voltar a respirar. A da minha empregada, invejo, foi de uma sensibilidade ímpar: a entrega de um gordo sorriso e uma reboladinha escrota ao som de Lemon Tree, que tocava no radinho de pilha mal sintonizado.