quinta-feira, outubro 26, 2006

Pequenos Pássaros - 3° Capítulo

Lembro-me que à tarde, quando o sino da igreja badalava, eu abandonava os livros e corria por essas ruas até a fábrica de sapatos. Lá esperava meu pai para ajudá-lo a carregar seus papéis de volta para casa. Certa vez, não cheguei a tempo de encontrá-lo. Foi um desses dias na vida de uma criança em que alguns acontecimentos singelos assumem proporções incomensuráveis. Um dia qualquer que levamos para sempre dentro de nós.

De cima da árvore, era uma rara tarde de pique-esconde. Do alto, era fácil manter o controle da situação. Se eles viessem pelo mato, eu correria pela viela até o beco dos soldados. Se viessem pelo campinho, eu daria a volta pela linha do trem e chegaria ao muro antes mesmo de ser visto. Se viessem pelo outro lado, por trás da barbearia, seria mais difícil, mas ainda assim sobravam pernas para chegar à frente. O problema é que nada disso adiantou quando o homem que colhia imagens e parava o tempo chegou.

Era um desses fotógrafos lambe-lambe, desses que se escondem por baixo de um pano preto para melhor capturar a luz. Eu já havia lido sobre esses fotógrafos, mas era a primeira vez que minha cidade via um. Fiquei fascinado. Estava tão entregue, tão hipnotizado por aquela magia, que nem percebi quando uma criança descobriu meu esconderijo. “Pique um, dois, três, Camilo!
Desci da árvore, me aproximei com curiosidade e sentei ao lado da câmera escura. O fotógrafo não disse uma palavra. Deu-me apenas um olhar e pronto. Para quê palavras? Explosões, fumaças e olhares já são suficientes.

Em determinado momento, com um gesto, ele me chamou. Entrei debaixo do pano preto e vi, através da lente, uma menina que graciosamente segurava uma flor em seu colo. Eu não tinha idade para me interessar por meninas, aliás, à época, não passavam de um estorvo em minha vida. O fato é que fiquei maravilhado como, através daquela máquina, era possível apreender seu olhar. Por um instante, a câmera permitia reter o olhar da menina contra o meu. Aquilo fez eclodir em mim um turbilhão de sentimentos que dispensariam as mais belas poesias. Não que houvesse beleza em seu olhar, pelo contrário. Em verdade, ele revelava uma dor que ela disfarçava muito bem através de seu lindo sorriso. Naquele dia descobri que eu era capaz de ler as pessoas através de seus olhos.

O tempo voou de forma magnífica enquanto eu mergulhava nos olhares de cavalheiros, meninos, noivas e senhoras que sorriam para uma caixa de madeira. Vi insegurança travestida de prepotência, dúvidas atrás de barbas, medo sob fardas, angústia disfarçada de alegria, solidão debaixo de véus. Só dei conta de mim quando o fotógrafo começou a recolher seu equipamento para ir embora. Essa hora o sino da igreja já havia badalado há muito.

Corri para casa. Eu precisava olhar nos olhos de meu pai. Quando cheguei, ele já estava jantando. Contei-lhe tudo quanto tinha visto. O fantástico mundo das imagens, o universo que existe por trás de uma foto e os dizeres que a luz dos olhos transmite. Mas ele não parecia me ouvir. E não ouvia mesmo.

Com os braços em volta do prato, ele arrancava pedaços de pão com os dentes, antes mesmo de engolir o que tinha em sua boca. Lambuzava seu bigode e batia o copo na mesa fazendo saltar de dentro a água. “Estamos em greve. Hoje demos início à luta revolucionária, um pequeno passo em busca dos nossos direitos foi dado... Garoto, você não foi à fábrica... leu alguma coisa hoje? Não? Pois bem, coma, leia mais de seu livro e vá dormir”. Sem receber um olhar em troca, fiz o que ele mandou.

E assim concluí o dia que, talvez, tenha sido o mais feliz de nossas vidas. Da minha vida, e da do meu pai.

Recordo-me desse dia, parado em frente à vitrine de uma loja que conserta brinquedos. Lá dentro, uma mulher aponta o dedo para a própria cabeça e faz sinal para que eu entre. Não tenho reflexo de recusar. “O senhor está sangrando. Está tudo bem?” Finjo que não escuto e a encaro com frieza. “Senhor, tudo bem?” Após alguns segundos de olhar perdido, tiro do bolso o já surrado lenço e o esfrego com raiva pelo meu rosto até sentir o gosto de sangue em minha boca. Arranco das mãos da mulher uma pequena ampulheta, a embrulho em meu lenço, jogo algumas moedas sobre o balcão e continuo meu caminho de volta ao passado.